O gado representa uma importante fonte de receitas para a América Latina; mais de 1 bilhão de pessoas no mundo todo dependem da indústria cárnea, e 70% das 880 milhões de pessoas de baixa renda (que ganham menos de US$ 1 por dia) dependem dos animais, pelo menos em parte, para seu sustento. Atualmente, o setor de carne bovina no Brasil representa o terceiro maior mercado consumidor de carne do mundo. Argentina, Uruguai e outros países sul-americanos exercem, também, uma poderosa influência no cenário mundial do mercado cárneo. Essa indústria tem enfrentado novos desafios devido a um número maior de consumidores mais bem informados acerca dos alimentos que consomem e a uma demanda por produtos muito pouco processados, que dispõem de segurança alimentar e que têm ótimas propriedades nutricionais e sensoriais. No início dos anos 1990, a tecnologia HPP (Processamento por Alta Pressão Hidrostática) começou a ser desenvolvida, o que representou uma alternativa inovadora para tratar a carne.
Princípios de HPP
HPP é a sigla em inglês para High Processing Pressure, ou seja, “Alta Pressão de Processamento” na tradução literal, ou pressão isostática. Ou, como é mais frequentemente conhecida, High Hydrostatic Pressure (Alta Pressão Hidrostática) e Ultra High Pressure (tradução livre: Pressão Ultra-alta), é um tratamento que mata micro-organismos por meio da interrupção das funções, em âmbito celular, fazendo uso de altas pressões e sem emprego de calor. Os componentes de um sistema de HPP são: recipiente de alta pressão, fecho para selar esse recipiente, dispositivo para sustentar o fecho na posição que deve ficar (enquanto o recipiente está sob baixa pressão), bomba intensificadora de pressão, sistema de controle e monitoramento de pressão e um sistema opcional de temperatura.
Esse sistema funciona com misturas de carne crua – seja ela cortada, fatiada ou em peça – pré-embaladas (geralmente, com embalagens flexíveis a vácuo) e tratadas em câmaras cercadas de água ou de algum outro fluido transmissor de pressão. A carne é mergulhada em um líquido em um recipiente lacrado. A pressão é gerada por uma bomba hidráulica ou por um pistão e é transmitida isostaticamente para dentro de um contentor de pressão, ao produto, instantaneamente e uniformemente. Essa pressão age em âmbito celular sobre a carne previamente embalada. A faixa de pressão oscila de 100 a 900 MPa e a variação de tempo vai de 0,5 minuto a 5,5 minutos, embora as pressões mais utilizadas variem de 400 a 600 MPa, dependendo do tipo de carne e do resultado esperado. Por exemplo, em variações de 200 a 400 MPa, a carne é amaciada, já que são formadas ligações em seu interior, possibilitando a retenção de umidade, conferindo ao produto suculência; entre 400 e 600 MPa, inativam-se patógenos e micro-organismos como bactérias, leveduras e fungos.
O que acontece quimicamente na carne quando a HPP é aplicada?
A alta pressão provoca o estresse mecânico das paredes microbianas e, consequentemente, inativa os micro-organismos. Garriga et al. (2002) descreveu uma taxa de mortalidade celular crescente conforme a pressão aumentava. As altas pressões favorecem a atividade proteolítica da catepsina (tipo de proteína) em virtude da liberação de proteases dos lisossomos do citoplasma (OHMORI et al., 1991). A textura da carne é modificada porque as proteínas miofibrilares são afetadas devido à interferência nas ligações de hidrogênio e nas ligações eletrostáticas, desnaturando proteínas e formando géis, ou solubilizando componentes da carne (MESSENS et al., 1997).
Na verdade, as estruturas primárias das proteínas não são afetadas pela pressão, mas sim as secundárias, terciárias e quaternárias, com a inativação das enzimas na carne. Carlez et al. (1993) relataram uma descoloração na carne devido à desnaturação e oxidação da mioglobina ferrosa em mioglobina férrica. Devido à presença de altas pressões, ocorre uma aceleração na oxidação dos peróxidos dos lipídeos, uma decomposição dos ácidos tiobarbitúricos e uma ruptura de adipócitos. Por meio de vários experimentos, foi relatada uma inativação da m-calpaína (proteína que evita a deterioração da carne no período post-mortem, ou seja, após o abate) quando são utilizadas pressões médias de 275 MPa, detendo a glicose e produzindo carnes com mais retenção de água e propriedades ligantes entre os lipídeos.
Benefícios e setores nos quais pode ser aplicada
A HPP é ideal para processar carnes prontas para o consumo (ready to eat meat) e produtos inovadores (com baixo teor de sal, ômega 3, etc.). Um benefício muito grande desse tipo de alimento é que têm uma grande aceitação, já que são mais naturais por não exigirem a aplicação de aditivos alimentares. A Alta Pressão Hidrostática é um processo adequado para carnes embaladas a vácuo ou com atmosferas modificadas (MAP). Além disso, confere à carne uma longa vida útil, favorecendo moléculas pequenas, como vitaminas ou compostos que dão sabor à carne; aliás, sua coloração quase não é afetada. A HPP tem um futuro promissor, dado que favorece a exportação de um produto tratado com essa tecnologia a outros países, pois não há regulações severas em relação a esse tipo de processamento, uma vez que os alimentos resultantes são de alta qualidade. Também ocorre menos perda por cozimento em misturas de carne crua cortada – com concentrações de NaCl que vão de 0% a 2% – submetida a pressões maiores que 400 MPa a uma temperatura de 10°C.
A Alta Pressão Hidrostática é um tratamento que se concentra na eliminação de patógenos alimentares e micro-organismos. Se pressões que variam de 101 MPa a 1.013 MPa forem empregadas, há a possibilidade de uma redução de mais de 5 logs na carga bacteriana dos micro-organismos Pseudomonas fluorescens, Citrobacter freundii e Listeria innocua em carne bovina moída (CARLEZ et al., 1993). Com pressões que vão de 600 MPa, a 20°C, durante 180 segundos (em carnes resfriadas, principalmente), as propriedades organolépticas não são alteradas, podendo haver uma diminuição de até 4 logs de Listeria monocytogenes (HARTMANN et al., 2004).
Hugas et al. descreveram que, em presuntos cozidos, curados e cortes bovinos marinados é possível prolongar a vida útil com pressões de 600 MPa, durante 10 minutos, a 30°C. Descobriu-se que a carne exposta a altas pressões, por longos períodos de tempo e a temperaturas moderadas fica macia no período post-rigor mortis (após o abate) devido à ativação das proteases nos músculos cárneos. Outro grande benefício é que a HPP causa um aumento na temperatura em decorrência da compressão exercida contra as forças intermoleculares – conhecida como aquecimento adiabático –, diminuindo o tempo de processamento e conferindo ao produto mais qualidade e reduzindo, também, o consumo de energia (TELLEZ et al., 2001).
Uma das principais áreas dessa tecnologia a ser aperfeiçoada é o equipamento utilizado na HPP, uma vez que é muito grande, faz muito barulho e consome muita energia; consequentemente, causa um impacto ambiental enorme. Outra desvantagem é seu alto custo de produção: para ser aplicada na carne, esta deverá estar fortemente embalada com uma embalagem especial resistente à alta pressão. Se forem aplicadas pressões acima de 400 MPa, por mais de 10 minutos, corre-se o risco de as proteínas desnaturarem e a carne adotar uma coloração pálida esbranquiçada, bem como perda de sua consistência. Em alguns casos, há perda por gotejamento – como é o caso do presunto tratado a 600 MPa, a 20°C, durante 10 minutos. Durante o tratamento por HPP, os compostos voláteis formados por reações de Maillard durante o cozimento são diminuídos, e os lipídeos oxidam porque se catalisam e aumentam a concentração do ácido tiobarbitúrico (CHEAH et al., 1996). Além de não ser possível evitar os gradientes de temperatura no interior do recipiente de alta pressão, os diferentes tempos e temperaturas durante o processamento, em pontos distintos da carne, podem causar um efeito de desuniformidade nela. Embora seja correto que seu efeito esterilizante é eficaz, a HPP pode ser uma faca de dois gumes, pois, como pode suprimir o efeito de alérgenos alimentares, também é capaz de ativar novas regiões de antígenos na carne.
Conclusão
A HPP é uma tecnologia de conservação muito procurada em países desenvolvidos, como os EUA, Canadá, Japão e no continente europeu; mas, na América Latina, ainda está crescendo. É um tratamento viável para prolongar a vida útil da carne, mantendo a qualidade sensorial e nutricional da carne sem a necessidade de aditivos ou conservantes. Quando utilizada de maneira adequada, não chega a alterar as propriedades organolépticas da proteína vermelha. A HPP, em comparação com outras técnicas mais convencionais, como as térmicas, independe de produto, tamanho e geometria do equipamento, pois a transmissão da pressão não depende da correlação massa/tempo, diminuindo, assim, a quantidade de tempo de tratamento.
Embora seja uma tecnologia de ponta, é um tratamento que implica vários desafios, como a neutralização dos efeitos secundários da pressão por meio do ajuste dos parâmetros de processamento – seja em ciclos de pressão e temperatura ou na formulação e embalo do produto. Outro entrave a ser combatido é tirar vantagem do efeito que a alta pressão causa na textura da carne e compreender, ficar a par de quais são os parâmetros que amaciam e esterilizam a carne a fim de aplicar esse tratamento em uma gama enorme de produtos cárneos oferecidos hoje em dia pelo mercado.
A HPP se torna mais eficaz se utilizada em sinergia com aditivos alimentares para diminuir a carga microbiana, acrescentando-lhe bacteriocinas na formulação do produto ou no produto final antes de ser tratado com essa tecnologia. Se a HPP for empregada em conjunto com tratamentos térmicos, ou melhor ainda, com alta pressão pulsada, poderá ser mais eficaz do que uma simples aplicação de alta pressão (HAYAKAWA et al., 1994). O que se sabe é que tudo aponta para essa tendência, na qual a HPP é combinada com alta pressão com temperaturas que variam de 60°C a 90°C, ou então com a compressão adiabática, a temperaturas acima de 100°C, algo que os cientistas denominam HPHT (High Pressure High Temperature = alta pressão e alta temperatura).
Referências
CARLEZ, A.; ROSEC, J.; RICHARD, N. & CHEFTEL. “High Pressure inactivation of Citrobacter freundii, Pseudomanas fluorescens and Listeria innocua in inoculated minced beef muscle” (Tradução livre: “Inativação por alta pressão de Citrobacter freundii, Pseudomanas fluorescens e Listeria innocua em músculo bovino moído e inoculado”). Lebenson Wiss Technology, nº 26, p. 357-363, 1993.
CHEAH, P. B. & LEDWARD, D. A. “High Pressure effects on lipid oxidation in minced pork” (Tradução livre: “Efeitos da alta pressão na oxidação lipídica em carne suína moída”) Meat Science, nº 43, p. 123 -134, 1996.
HARTMANN, C. & DELGADO, A. “Numerical simulation of the mechanics of yeast cell under high hydrostatic pressure” (Tradução livre: “Simulação numérica da mecânica da célula de teste sob alta pressão hidrostática”). J Biomech, nº 37, p. 977-987, 2004.
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HAYMAN, M. M.; BAXTER, I. O.; RIORDAN, P. J. & STEWART, C. M. “Effects of high-pressure processing on the safety, quality and shelf life of ready to eat meats” (Tradução livre: “Efeitos do processamento por alta pressão hidrostática na segurança, qualidade e vida útil de carnes prontas para consumo”). Journal of Food Protection, nº 67, p. 1709- 1718, 2004.
HEREMANS, K. “The effects of pressure on biomaterial” (Tradução livre: “Efeitos da pressão em biomateriais”) In: HENDRICK, X. & MEG, K. D. (eds) Ultra high pressure treatment of foods (Tradução livre: “Tratamento de ultra-alta pressão de alimentos”) Academic/Plenum Publishers, Nova Iorque, p. 23-51, 2002
HUGAS, M.; GARRIGA, M. & MONFORT, J. M. “New mild technologies in meat processing: high pressures a model technology” (Tradução livre: “Novas tecnologias moderadas no processamento de carne: tecnologia de alta pressão – um modelo”), 2002.
MESSENS, W.; VAN CAMP, J. & HUYGHEBAERT, A. “The use of high pressure to modify the functionality of food proteins (Tradução livre: “Uso de alta pressão para modificar a funcionalidade de proteínas alimentares”). Trends Food Sci Technology, nº 8, p. 107-112, 1997.
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TELLEZ, S. J.; RAMÍREZ, J. A.; PÉREZ, C.; VÁZQUEZ, M. & SIMAL, J. “Aplicación de la alta presión hidrostática en la conservación de los alimentos” (Tradução livre: “Aplicação de alta pressão hidrostática na conservação dos alimentos”). Ciencia Tec Alimentaria, nº 3, p. 66-80, 2001.
Sobre a autora
Claudia Ordaz é formada em engenharia de alimentos pelo Instituto Técnico e de Estudos Superiores de Monterrey (ITESM), localizado no México. Claudia fez mestrado em tecnologia educativa na Universidade de British Columbia, no Canadá, e no ITESM. Colaborou como editorialista em vários jornais e revistas, entre eles o reconhecido jornal mexicano El Norte. ordaz.claudia@gmail.com