O novo repique do desmatamento na Amazônia e a reação ruralista à abertura dos dados do Cadastro Ambiental Rural trouxeram à tona o que de mais atrasado temos no nosso agronegócio. Em um país que almeja a liderança internacional da produção agrícola – e um protagonismo na agenda climática – não há mais espaço para retrocessos ou hesitações.
Cada dia mais poderoso no cenário político-econômico brasileiro, o agronegócio vive uma crescente diferença entre duas identidades. Na prática, há dois “agros” distintos. Um é o “novo agro”, o agro moderno, recordista de produtividade, antenado com as tendências internacionais, comprometido com o cumprimento das regras trabalhistas e ambientais. O agro que está interessado em sustentabilidade e preocupado com mudanças climáticas, não para “esverdear” seu negócio, mas por que entendeu que a natureza é parte importante da sua atividade.
O outro é o “velho agro”, que simboliza tudo que temos de mais atrasado no meio rural brasileiro. Este agro rima com grilagem de terras, trabalho escravo, desmatamento e outras práticas degradantes. É o agro parado no tempo, de coloração sépia, como os tantos “Coronéis Saruê” retratados recentemente pela novela Velho Chico. Ficção que imita a vida, é o agro do Jotinha, o Grileiro dos Jardins, que comandava um sofisticado esquema de desmatamento a partir de sua mansão na capital paulista. O agro que falsifica, corrompe, degrada – e até mata.
É chegada a hora de o Brasil tomar partido ao lado de um dos agros. Não há mais espaço para os dois agros num país que busca estar na dianteira do desenvolvimento sustentável e se orgulha de ser ainda detentor das maiores extensões de florestas tropicais do mundo. O Brasil do presente precisa abrir espaço, precisa enterrar o Brasil do passado – no passado. O Brasil quer um agro do qual ele possa se orgulhar efetivamente. Um agro que não tem vergonha de ser agro e que sai das sombras para se mostrar moderno, correto e sustentável. O agro que cumpre as regras e que não tem motivos para se esconder; que, de fato, entrega não apenas a desgastada promessa de celeiro do mundo, mas o faz com justiça social e como modelo de sustentabilidade para outras economias.
A disponibilização online dos dados do Cadastro Ambiental Rural é um dos grandes acertos dessa gestão do Ministro José Sarney Filho. Bandeira antiga da sociedade civil organizada, a transparência ativa do CAR significa disponibilizar para a sociedade um banco de dados inédito sobre a composição do meio rural brasileiro, contendo a delimitação das propriedades e o reconhecimento das áreas destinadas à produção e aquelas voltadas à conservação dos ecossistemas nativos.
Apesar de a decisão estar sendo metralhada por setores do velho agro – que parecem expressar uma opinião majoritária, dado o silêncio do novo agro – ela não é fruto de uma “ousadia inconsequente de um ministro ideológico”. Em outubro o Ministério Público Federal havia oficiado ao MMA para que fizesse a abertura dos dados em até 120 dias. A transparência do CAR é prevista no próprio Código Florestal que os ruralistas aprovaram em 2012. Ou aprovaram um código que não era para ser implementado?
O que os defensores da opacidade do CAR parecem não ter compreendido ainda é que a transparência do Cadastro é a chave para que o novo agro possa se consolidar como opção ao velho agro. Não se trata de caça às bruxas ou revanchismo – muito pelo contrário, o Cadastro é o instrumento central para o bom funcionamento do código florestal.
Um Cadastro transparente irá beneficiar o próprio agro, na medida em que permitirá aos compradores de produtos agrícolas selecionar seus fornecedores de acordo com o cumprimento da legislação florestal. Essa transparência tem o poder de gerar um círculo virtuoso que começa na adequação ao código florestal e pode levar nosso Agro à liderança mundial na agricultura de baixo carbono e socialmente responsável.
Não se pode antagonizar, em pleno século XXI, o direito à privacidade com a disponibilização de informações de interesse da sociedade. Ou alguém questiona que os salários dos servidores públicos estejam disponíveis online? Ou que os contratos da administração pública devam estar disponíveis? Ou que haja acesso público aos processos de licenciamento ambiental, por exemplo? Em tempos de Google Maps e outras tantas ferramentas online, o argumento de que os “inimigos” estarão vendo nossas “informações estratégicas” soa pueril ou paranoico.
No fim do dia, voltamos à discussão sobre que agro queremos para o Brasil. Afinal de contas, se estão todos cumprindo a lei florestal, contando com sucessivas e generosas prorrogações de prazos para o cadastramento, a transparência do CAR não deveria incomodar a ninguém. A não ser que estejamos dispostos a perpetuar o velho agro e abafar o novo agro. É ingênuo, portanto, argumentar que a transparência é uma bandeira de ONGs ambientalistas anacrônicas. É uma demanda de toda a sociedade brasileira.
Por Cristiano Vilardo e Rodrigo Medeiros*
*Cristiano Vilardo é Diretor Senior de Política e Estratégia Institucional e Rodrigo Medeiros é Vice-Presidente da Conservação Internacional Brasil. Membros do Observatório do Código Florestal