Este artigo vai se deter no abate religioso (sem insensibilização) de gado, principalmente por meio das técnicas Glatt Kosher (padrão koshermais rígido de inspeção de grandes animais, como bovinos, por exemplo) [shechitá = outra denominação para esse tipo de abate religioso judaico] e Halal (tipo especial de abate na religião muçulmana), uma vez que esses métodos apresentam muitos desafios singulares para o animal, a planta e o abatedor. As Diretrizes de Manejo Animal de 2013 do Instituto Norte-americano da Carne (AMI, na sigla em inglês) proíbem que plantas de abate religioso prendam ou icem animais vivos. Por causa disso, a maioria das plantas utiliza um box contentor vertical ou giratório para manter o gado imóvel para que sua garganta seja cortada e ele perca consciência por meio da exsanguinação (perda de sangue), de acordo com os preceitos religiosos. Os funcionários religiosos do abate dispõem de um conjunto único de procedimentos para serem postos em prática a fim de atender requisitos religiosos. A planta pretende produzir um produto derivado da carne bovina com o máximo de qualidade, e o animal tem quer ser colhido com a quantidade mínima de estresse. Lidar com todas essas expectativas demanda empenho, medidas contínuas e comunicação entre todos os acionistas. Tudo isso é, contudo, possível de ser feito e cumprido, como é o caso de uma das plantas de Glatt Kosher da América do Norte, a Agri Star Meat & Poultry LLC. Essa planta abriu em 2010 e seu programa se iniciou da seguinte forma:
Evolução do Programa de Manejo Humanitário
• funcionários e diretoria foram treinados quanto aos princípios de manejo humanitário e expectativas da planta, com documentação referente a treinamento e um questionário que foi ministrado para garantir que as informações fossem entendidas;
• a equipe rabínica (shochet = judeu que abate animais) recebeu um comunicado em relação às expectativas da planta quanto a um corte feito de forma rápida:
– a planta precisava do shochet para realizar qualquer lavagem e preparação do equipamento fora da vista do animal, para que o carregamento do box não fosse afetado;
– foram providenciadas uma sala e uma pia, onde a chalef (faca especial de abate do tipokosher) poderia ser lavada e afiada antes de ser utilizada no animal seguinte;
– com dois shochets e dois chalefs, um shochet pode preparar um outro chalef e o outro pode ser lavado e ficar pronto para realizar a shechita à medida em que o próximo animal estiver posicionado no box;
– o objetivo era fazer o corte dentro de 10 segundos após o animal ter sido “preparado” e ficado pronto. Isso diminui o tempo de contenção do animal antes do corte;
– a equipe desenvolveu uma Abordagem Sistemática Consistente para Manejo Humanitário de gado. Como parte desse programa, a planta implementou uma abordagem subdividida em três partes a fim de aferir o manejo humano:
• primeiramente, cada animal foi avaliado por um representante de certificação de qualidade em relação aos Principais Critérios de Medição do AMI (Instituto Norte-americano da Carne): insensibilidade, uso de cutucador elétrico, vocalização e gradação;
• a eficiência do atordoamento não é aplicável ao abate do tipo religioso sem insensibilização; entretanto, o Dr. Temple Grandin explica isso de maneira mais clara em seu site: “Um abatedor habilidoso pode induzir mais de 95% do gado a entrar em colapso em um período de tempo de 30 segundos.”;
• em virtude disso, fez-se uso de um cronômetro a fim de medir a eficácia do sangramento: tempo de disposição do animal no box, quantidade de tempo do preparo ao corte e tempo para cada animal perder a consciência (medido por olho de lombo);
• a planta também contratou um fiscal que não trabalha internamente para efetuar uma análise não anunciada de manejo humanitário, semanalmente, de 40 a 45 cabeças, o que corresponde a aproximadamente uma hora de produção, seguindo a ferramenta de fiscalização AMI. A eficácia de sangramento também foi aferida em 10 cabeças de gado, a cada semana. Os resultados foram relatados à planta e à empresa Voogd Consulting, Inc.;
• pelo menos anualmente a Voogd Consulting, Inc. também realiza uma fiscalização terceirizada, não anunciada, de manejo humanitário. Os resultados foram fornecidos à planta.
Alterações nas instalações e design dos equipamentos
Como a planta tinha acabado de ser inaugurada, gastou-se muito tempo na inspeção da disposição dos currais, de corredores e do equipamento do box giratório. A equipe queria se certificar que o projeto da planta oferecia a eficácia máxima em movimentação do gado, com assoalhos antiderrapantes e pouca ou nenhuma distração que pudesse ocasionar choques entre animais ou a necessidade de estimulação elétrica. Todas as áreas capazes de causar qualquer tipo de estresse animal foram abordadas.
• uma alteração se deu em relação às porteiras traseiras, que eram pesadas e poderiam danificar cortes valiosos, como costela e filé. Foram instalados contrapesos para diminuir o peso, assim como foram adicionados rolamentos à base das porteiras para permitir que o gado passasse sob elas tranquilamente. Foram acrescentados cadeados às porteiras para que fossem conservadas quando inutilizadas;
• o corredor anterior ao box contentor foi escurecido para acalmar os animais enquanto estivessem montados. Quando a porteira fosse levantada para dar acesso à área de contenção, o gado iria se mover do escuro para o claro;
• uma pequena porta de correr foi adicionada à lateral do box contentor para que o gado fosse gentilmente encorajado a se mover adiante com o auxílio de uma pá ou cutucador vibrador (não elétrico);
• um espelho feito totalmente de metal foi adicionado acima do box para que o operador do contentor possa ver onde o animal se situa dentro do box e visualizar a área de agrilhoamento.
Para facilitar o manejo humanitário, o box contentor de gado deve fornecer os seguintes comandos:
• todas as peças móveis são controladas hidraulicamente para que se movimentem silenciosa e suavemente. Movimentos bruscos e desengonçados podem assustar os animais;
• os movimentos de todas as peças que se mexem devem ser suaves, pois os animais ficam sujeitos ao contato com essas peças. As válvulas de controle devem ter uma boa capacidade de estrangulamento (parecido com o acelerador de um carro), para que o operador tenha controle sobre a velocidade de movimento (GRANDIN, 1992);
• os componentes do contentor: empurrador traseiro, parede lateral e levantador de queixos têm controles manuais separados para cada componente;
– foi necessário o posicionamento em médio curso do componente para propiciar ajustes que variem de acordo com o tamanho do animal;
– válvulas de aliviamento de pressão foram instaladas para controlar a pressão máxima que pode ser aplicada e excedida para evitar pressão em excesso, lesões ou danos;
– peças diferentes do contentor exigem configurações diferentes de pressão máxima. O suporte de cabeça deve ser configurado a uma pressão máxima mais branda do que outras peças do contentor, como a porta maciça ou empurrador de quartos traseiros;
– todos esses controles ajudam a garantir que cada animal seja contido sutilmente e sem lesões ou estresse, que podem causar vocalização (grunhidos) e possíveis escoriações dos músculos.
• foi instalado um spray de água no box para facilitar a lavagem rápida da região do pescoço do animal antes do corte de sua garganta. A higiene da área da garganta é importante à pessoa que fará o abate para garantir um corte eficiente, bem como para evitar cortes na lâmina;
• a planta reconheceu a importância de se conter o animal minimamente antes do corte, para prevenir escoriações ou constrição dos vasos;
• imediatamente após a garganta ser cortada, o box contentor é rapidamente afrouxado na cabeça e corpo do animal para facilitar a rapidez do fluxo sanguíneo e acelerar a perda de consciência;
Resultados
Resumo das Informações da Fiscalização (Medidas da AMI)
dezembro de 2010 a dezembro de 2014
Total de animais | Animais sensíveis no corredor | Animais nos quais se utilizou o bastão cutucador | Animais que escorregaram | Animais que caíram | Animais que vocalizaram (grunhiram) |
N = 7718 | 0 | 208 | 48 | 0 | 346 |
Percentual que ultrapassou o limite da AMI | 0 | 25 | 3 | 1 | 5 |
Percentual da planta | 0 | 2,7 | 0,6 | 0 | 4,5 |
Desvio padrão | 0 | 1,21 | 0,49 | 0 | 1,33 |
Percentual máximo | 0 | 14,3 | 6,7 | 0 | 15 |
Percentual mínimo | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Informações fiscalizatórias de análises semanais não anunciadas (de um total de 188 fiscalizações) demonstram que, no geral, os limites da AMI foram cumpridos para todas as aferições quando calculadas suas médias, o que indica gerenciamento e controle do programa.
Ocorreu uma típica variação de semana para semana. O uso de cutucadores elétricos foi mínimo, com a média de 2,7%, o que é considerado excelente. Contar com a disponibilidade de um cutucador vibratório e pás com ranhuras como principais ferramentas de guia contribuiu bastante para aquele percentual baixo. A vocalização foi o critério mais desafiador de se controlar, com 33% da pontuação fiscalizatória excedendo o limite de 5% da AMI. Na maioria dos casos de vocalização, foi difícil conter a cabeça, especialmente de gados menores, bem como a vocalização durante a lavagem do pescoço ou devido à agitação após o uso do cutucador. Nenhum dos animais fiscalizados caiu na rampa de montagem ou no box giratório. Escorregadas não são consideradas um critério fundamental da fiscalização da AMI, mas são empregadas como uma ferramenta secundária de medição. A média de escorregadas foi baixa, de 0,6%. Geralmente, as escorregadas ultrapassaram o limite da AMI, com 2,7% dos resultados da fiscalização maiores que 3% de escorregadas. Esse percentual seria capaz de medir um boi ou novilha que escorregasse até ficar de joelhos, possivelmente durante o posicionamento do animal no box.
Informações sobre a eficácia da sangria
Quantidade de gado avaliada N = 1810 |
Tempo entre a entrada do animal nobox e a conclusão da preparação (em segundos) |
Tempo entre a conclusão da preparação e o corte da garganta (em segundos)
|
Tempo entre o corte da garganta e da área de olho de lombo (perda de consciência) em segundos
|
Quantidade de gado avaliada N = 1810 |
Gado que leva mais de 30 segundos para perder a consciência
|
Gado que necessita de um disparo de dardo cativo
|
Média | 25,5 | 3,8 | 22,8 | 5 | ||
Desvio padrão | 5,99 | 1,69 | 3,78 | |||
Máximo | 57 | 18 | 38 | Número | 35 | 0 |
Mínimo | 13 | 1 | 13 | Percentual | 1,97% | 0% |
Houve 1810 medições cronometradas da Eficácia de Corte realizadas em um período de 4 anos. Foram utilizados 9 operadores de box diferentes, embora três principais operadores habilidosos (85% das medições) de fato tenham operado o box contentor. Houve uma incidência de 34 abatedores diferentes realizando shechita ao longo desses 4 anos; mas, foram utilizadas 5 shochets para 1121 cortes, contabilizando mais de 60% das medições. Os resultados indicam que o tempo médio de preparação do box foi de 25,5 segundos, com o período de tempo mais longo menor que um minuto e 57 segundos. Os motivos que causaram um tempo mais prolongado de preparação se deram, geralmente, devido ao fato de animal ser menor e difícil de ser posicionado, de ele se sentar no box ou de se debater dentro desse espaço. O tempo médio do preparo para o corte foi de 3,8 segundos, tendo sido marcado o tempo mais longo em 18 segundos, indicando que a equipe rabínica foi ágil e eficiente na realização da shechita. Os poucos períodos mais prolongados de corte normalmente foram documentados como o fato de o abatedor não estar pronto ou precisar lavar o pescoço do animal por mais tempo. Apenas 35 (1,97%) das 1810 cabeças de gado medidas levaram mais que 30 segundos para perder a consciência, com o tempo mais longo sendo de 38 segundos. Uma eficácia de corte de 98% ultrapassa a expectativa de 95% ou mais em um período de 30 segundos ou menos. A planta objetiva disparar dardos em qualquer cabeça de gado que não sangre dentro de 40 segundos; consequentemente, nenhuma dessas cabeças precisou de um disparo de dardo cativo devido à ineficiência na sangria. Todos os animais estavam insensibilizados antes dos primeiros 40 segundos e permaneceram assim no curral de sangria.
Considerações finais
Quando se avaliam os processos de manejo humanitário, as expectativas de comunicação, a estipulação de medidas, o monitoramento de resultados e o fornecimento de retornos em relação aos resultados, e até a mais desafiadora das operações pode atender os padrões da indústria ou excedê-los. Obrigado à Agri Star Meat & Poultry LLC por compartilhar seu caso.
Autora: Erika L. Voogd, presidente da Voogd Consulting, Inc., West Chicago, IL –atualmente, trabalha como uma consultora independente especialista em assistência global à Indústria Cárnea. Suas especialidades incluem Bem-estar Animal, Segurança Alimentar, Análise de Pontos Críticos de Controle, Garantia de Qualidade, Sanitização e Cumprimento de Regulamentos do Departamento de Agricultura dos EUA.
Referências
www.grandin.com (disponível apenas em inglês) – “Maintaining acceptable animal welfare during Kosher or Halal slaughter” (“Mantendo um bem-estar animal aceitável durante o abate kosher ou halal”. Acesso em: setembro de 2012.
GRANDIN, T. “Observations of cattle restraint devices for stunning and slaughtering” (“Considerações sobre dispositivos de contenção de gado para atordoamento e abate”). Revista Animal Welfare, nº 1, p. 85-91, 1992.
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