A sucessão no campo ainda é um tabu para muitos produtores, mas o sucesso dessa transição depende da profissionalização da atividade e da transparência com que pais e filhos tratam o assunto
Na Fazenda Pérola, em Alpinópolis, MG, os quatros filhos do produtor Antônio José Freire, de 68 anos, se preparam desde a adolescência para assumir os negócios. Atualmente, os homens, Mateus, de 34 anos, e Enéias, de 30 anos, dividem as principais funções da produção. O mais velho toma conta dos animais, da inseminação à ordenha, e o outro cuida da lavoura, para garantir a alimentação do rebanho. E as mulheres, Lilian, de 40 anos, e Helen, de 37, são responsáveis pela parte burocrática e pelo dia a dia do escritório. O pai acompanha tudo de perto, mas garante que dá autonomia para todos cuidarem de suas tarefas.
Para a família, a sucessão do comando dos negócios nunca foi encarada como um problema e sempre foi tratada com naturalidade e transparência. “A atividade leiteira é árdua e complexa, precisa de muita dedicação, pois não temos folga. A gente sempre conversou muito sobre isso. Desde criança, eles me acompanhavam no dia a dia e foram aprendendo sobre tudo na fazenda”, lembra Antônio José.
Ele conta que começou cedo a preparar os filhos para assumirem o negócio da família. E teve sorte de todos terem interesse em continuar a atividade. Isso não os impediu de saírem para estudar fora da cidade. “Um dos meninos começou a faculdade de agronomia e o outro de administração. Nenhum dos dois chegou a se formar, mas eles tiveram essa experiência e voltaram para cá. Eles conhecem bem o negócio e estão preparados para a sucessão”, garante o produtor.
Antonio José, que nasceu na área rural, conta que antes de iniciar a atividade leiteira teve uma empresa de transporte. Mas há 30 anos decidiu voltar para o campo. O negócio começou pequeno, e hoje a família Freire produz 16 mil litros de leite por dia, em cerca de 800 hectares, divididos em oito pequenas propriedades. “A gente vê tanta desavença por aí, herdeiros vendendo as terras, dividindo tudo. Isso torna inviável a produção de leite. Por isso, sinto orgulho dos meus filhos, pois todos tiveram interesse em continuar o negócio da família.”
Infelizmente, o caso da família Freire não é a regra na maioria das propriedades rurais, especialmente as de leite. Estima-se que atualmente existem em torno de 5 milhões de propriedades rurais no País. Mas estudos de instituições agropecuárias indicam que 40% delas devem deixar de operar até 2030. E um dos principais motivos é a sucessão mal feita.
Esse dado é reforçado por recente pesquisa feita no Rio Grande do Sul, salienta Francisco Vila, diretor da Sociedade Rural Brasileira (SRB) e especialista no assunto. Segundo ele, a pesquisa mostrou que 32% dos produtores rurais gaúchos afirmaram não ter um sucessor para dar continuidade à atividade. “Eu diria ainda que outros 20% que acham que têm sucessor estão enganados”, sentencia Vila. Na atividade leiteira, onde o trabalho é muito mais intensivo, ele acredita que cerca de 50% dos produtores devem deixar a atividade nas próximas duas décadas.
Para o analista da Embrapa Gado de Leite, o agrônomo Fábio Homero Diniz, a primeira questão a ser analisada é a diferença entre sucessão e herança. A herança está relacionada aos bens materiais, no caso das propriedades rurais, basicamente a herança é a terra. Já a sucessão, diz ele, vai além. Envolve a questão cultural, o conhecimento e as habilidades da atividade que passa de geração para geração. “O sucessor recebe mais que a herança. Ele é responsável pela continuidade da atividade da família.”
Nas grandes propriedades, avalia Diniz, o processo de sucessão costuma ser mais tranquilo, pois, além de o negócio ser profissionalizado, a família tem mais suporte e apoio no processo, normalmente por meio de empresas especializadas. Mas como não há programas específicos oferecidos pelas empresas de extensão rural, nas propriedades familiares a transferência da administração da propriedade rural é mais complicada. E esse é justamente o principal perfil do setor de produção de leite. “Mais de 1 milhão de propriedades leiteiras no Brasil são de produtores familiares”, acrescenta o analista.
Além do perfil familiar, a atividade tem algumas peculiaridades que tornam o processo ainda mais diferenciado. Conforme explica Diniz, o assunto sucessão ainda é um tabu em muitas famílias, pois remete à morte, à substituição do pai. Além disso, normalmente o local de trabalho se confunde com a vida pessoal da família. “Não há separação entre o negócio e o convívio social, o que torna a sucessão mais complexa, especialmente por causa das diferenças entre as gerações.”
Por isso, uma das principais dicas dos especialistas é a comunicação entre os membros da família. “É preciso conversar sobre o assunto, discutir o que cada um pensa sobre o futuro, para evitar conflitos familiares, especialmente quando o patriarca morrer”, orienta Diniz. O diálogo e a transparência são fundamentais para permitir a continuidade da atividade.
Segundo o agrônomo, são dois desafios: para os pais, que querem e imaginam como será o futuro da atividade em que eles trabalharam toda a vida; e para os filhos, que buscam um espaço na propriedade. “São dois pontos de vista diferentes e que precisam ser discutidos. Geralmente a discussão fica somente em cima do filho, mas temos de levar em conta a expectativa dos pais, que, ao passar o comando do negócio para o filho pode sentir o chamado ‘vazio social’, perdendo a identidade na família e na comunidade, e deixando de ser referência”, alerta o analista da Embrapa, reafirmando que é o diálogo pode minimizar essa questão.
Outra dica importante de especialistas é que o processo de sucessão seja em longo prazo, para que não haja esse choque. Não há uma idade indicada. O importante é que o filho, ou os filhos, tenham maturidade para começar a entender o negócio e a ter autonomia para tomar decisões. O envelhecimento da população rural e o êxodo dos mais jovens têm chamado a atenção para o tema da sucessão. E a profissionalização da atividade pode ser um dos caminhos para mantê-los no campo e dar continuidade ao negócio da família.
O sócio-diretor da consultoria Safras & Cifras, o agrônomo e administrador de empresas Sandro Al-Alam Elias, explica que antes de iniciar o processo de sucessão é preciso trabalhar o conceito de transferência da fazenda em empresa, ou seja, profissionalizar a atividade rural. “O desafio é criar um ambiente atrativo para os jovens, para que se interessem pelo negócio e continuem no campo. O filho tem de ter perspectiva de futuro”, destaca. Desta forma, em vez de dividir a propriedade entre os herdeiros, é feita a divisão da participação e função de cada um no negócio.
Elias frisa que, para manter a escala do negócio, é preciso evitar o fracionamento da propriedade e fortalecer a estrutura familiar. Para isso, deve ser organizada a gestão da propriedade, com a adoção de ferramentas gerenciais que definam as relações comerciais entre pais e filhos, que tenham regras com relação à distribuição de resultados, ao montante de investimentos e deliberação de prioridades, à tomada de financiamentos e à participação da família na administração.
“No caso de dois irmãos, por exemplo, em que um trabalha no campo e o outro é médico na cidade, aquele que trabalha na propriedade deve ser remunerado, enquanto o que está fora recebe apenas uma participação. Essa separação ajuda muito no processo de sucessão. É preciso ter regras e direitos claros sobre o papel de cada um”, diz o consultor da Safras & Cifras.
A profissionalização também garantiu o sucesso na sucessão da Fazenda Rhoelandt, em Castro, PR. A administração da empresa já está na segunda geração sob o comando do pecuarista Ronald Rabbers, de 48 anos, e o negócio continua crescendo. A propriedade, de cerca de 100 hectares, produz 11 mil litros de leite/dia. O rebanho, que começou com 60 animais, hoje conta com 800, sendo 300 vacas em lactação, em média. O negócio foi profissionalizado e a empresa é separada das questões particulares da família.
Rabbers conta que seu pai, Lucas (já falecido), descendente de holandeses, veio para o Brasil no início da década de 1950 e iniciou a produção de leite na cidade paranaense. Em 1986, aos 18 anos, o produtor diz que parou de estudar e decidiu trabalhar integralmente na propriedade. “A sucessão no campo é muito natural aqui. Desde criança a gente é criado para dar continuidade aos negócios da família. Foi uma opção minha parar de estudar. Quero que meus filhos tenham uma formação, mas que também deem continuidade ao nosso negócio”, diz o produtor.
No processo de profissionalização da atividade, Rabbers buscou tecnologias para aumentar a produção, sempre com foco no futuro da atividade e da família. Segundo ele, seus filhos – Carolina, de 20 anos, Lucas, de 18, e Hilco, de 12 – já mostram aptidão para dar continuidade à empresa.
“Sempre conversamos muito sobre isso, mas os deixo à vontade para decidir o que fazer. E eles me acompanham nas atividades diárias, já sabem participar da ordenha. O Lucas está cursando veterinária. É um privilégio quando a gente tem a oportunidade de dar continuidade ao negócio da família”, acredita o produtor.
Apesar disso, Rabbers não esconde dos filhos os entraves e as dificuldades da atividade. “É um trabalho árduo, não é brincadeira. Precisa gostar e ter disposição e disponibilidade, porque a produção de leite nos consome 24 horas por dia, todos os dias. Não tem folga. E nem sempre o mercado corresponde. Mas, claro, é uma atividade viável.”
O consultor Elias, da Safras & Cifras, também recomenda que os pais sejam transparentes com os filhos sobre a situação do mercado leiteiro. “O pai tem de incentivar o filho a continuar com a atividade. Não pode apenas reclamar. Como ele quer que o filho dê continuidade ao trabalho se ele só reclama? É preciso passar o lado positivo, pois há muitos. E há muito espaço para a atividade crescer no País, pois o Brasil ainda importa leite em pó, por exemplo.”
Entre os pontos positivos estão fatores como melhor qualidade de vida, autonomia do trabalho e tempo, ser patrão em vez de empregado, além da questão familiar, de dar continuidade ao negócio da família, complementa o analista da Embrapa, Fábio Diniz.
Para o especialista Francisco Vila, da SRB no RS, o principal erro no processo de sucessão rural é não encarar o assunto. A sucessão é um fenômeno inevitável e independente da vontade das pessoas. “Quanto mais cedo e de forma melhor o atual dono coloca essa questão em seu radar estratégico, maior a chance de encontrar uma solução viável”, diz.
O segundo erro, frisa Vila, é escolher a forma e o momento errados para falar sobre o assunto. Sucessão é normalmente confundida com herança e esse termo está psicologicamente vinculado à morte. Sucessão é evoluir. Outro erro crucial, acrescenta, é falar da sucessão, mas não passar responsabilidades e competências para o jovem.
Normalmente, avalia Vila, os pais permanecem com a propriedade legal e exercem pressões psicológicas sobre o sucessor que ainda não é proprietário. Além disso, na maioria dos casos não se definem bem os direitos e obrigações dos outros herdeiros que não estão ou estarão envolvidos na gestão da propriedade. Essa indefinição cria conflitos que afetam negativamente a condução do negócio. Conforme o especialista, atualmente cerca de 20 mil fazendas, acima de mil hectares, passam de pai para filho por ano no Brasil, mas apenas 20% têm sucesso.
Outra conduta usual que Vila considera errada é tratar a sucessão como herança. “Desta forma, tanto o bem quanto a administração deverão ser assumidos pelos herdeiros somente após a morte do proprietário. Contudo, sem a preparação ou definição do gestor, pode ocorrer interesse mútuo em assumir a administração ou o contrário: nenhum deles se interessar em tocar o negócio. Em ambos os casos surgirão desavenças que culminarão com a venda da terra, frequentemente desvalorizada”, alerta.
O agrônomo Carlos Eduardo, da Cooperideal, alerta para outro problema. Segundo ele, no Brasil muitos filhos de produtores rurais deixam o campo por obrigação e não por opção. “Em nossas visitas pelo programa Goiás Mais Leite/ Senar aos produtores de leites, escutamos dos filhos dos produtores que os próprios pais indicam que precisam buscar outro meio de vida, pois a roça não dá para nada. Ou seja, a renda da atividade não é suficiente para sustentar toda a família – no caso de propriedades geridas de maneira inadequada.”
Um diagnóstico realizado pela Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás (Faeg), em 2009, relata dois dados que traduzem esse cenário, destaca Eduardo. O primeiro é a idade média dos produtores entrevistados, de 51 anos, demonstrando uma idade avançada e com baixa reposição. Outro dado e que complementa o anterior é que apenas 42% dos filhos dos produtores querem continuar o negócio da família.
“Avaliando os baixos índices zootécnicos do diagnóstico (lotação de apenas 1,1 unidade animal por hectare (UA/ha); só 59% das vacas produzem ao longo do ano; uma novilha para parir demora 36 meses após o nascimento. Podemos identificar que os resultados econômicos são pífios, ou seja, o principal problema da sucessão familiar na atividade leiteira é a falta de renda e de gestão adequada”, avalia o agrônomo.
Além disso, outros fatores fazem parte do processo, como a falta de tecnologia empregada nas propriedades, maior autonomia e responsabilidade que os pais precisam passar para os filhos e a falta de perfil para o negócio leite. Contudo, estes fatores aparecem com maior ênfase somente quando a propriedade tem condição de fornecer renda suficiente para os anseios da família, caso contrário, a falta de renda aparece como o maior problema da continuação dos filhos na atividade leiteira.”
Mas outro dado é animador e ratifica a importância da assistência técnica aos produtores, pondera Eduardo. “Fizemos um diagnóstico dos produtores assistidos pelo Goiás Mais Leite em propriedades com mais de dois anos de acompanhamento técnico e obtivemos uma surpresa: 75% dos filhos dos produtores querem continuar a atividade leiteira na fazenda, e isso estava em consonância com o aumento de renda proporcionado pelo trabalho técnico realizado, vislumbrando um futuro promissor para os herdeiros.”
Na cooperativa agropecuária Castrolanda, em Castro, PR, o assunto sucessão também é uma preocupação. Segundo a assessora de cooperativismo Rosélia Gomes da Silva, uma das percepções é que os filhos não enxergam o negócio da mesma forma que os pais. E esse conflito acaba gerando entraves na sucessão. “Quando o pai morre, os filhos dividem a propriedade, o que torna inviável a atividade leiteira”, avalia.
Por isso, a cooperativa tem orientado os produtores a olhar para o negócio, ajudando a organizá-lo e administrá-lo com uma gestão planejada. “Não temos um programa específico para sucessão, mas temos algumas ações para os jovens e estamos buscando propostas para os cooperados, pois essa é uma preocupação de todos.”
Uma das ações é o programa Jovem Cooperativista. “É uma oportunidade para os jovens se especializarem e voltarem a trabalhar na atividade leiteira, ou ao menos gerenciá-la, mesmo que de longe”, explica Rosélia.
Há diversos casos de sucessão que deram certo. E o ponto-chave para o sucesso foi a valorização da gestão profissionalizada da atividade. “Além disso, nesses casos percebemos que há uma divisão bem clara das funções entre os herdeiros, e cada um tem consciência do negócio, dos gastos, custos e ganhos. Isso é essencial.”
Dicas para a sucessão
1. O processo deve ser planejado a longo prazo e gradativamente, para evitar choques de gerações e ideias;
2. Desprendimento: o produtor deve ter disposição para se afastar do negócio e confiar nas decisões dos herdeiros. O ideal é que o sucedido reduza o trabalho aos poucos;
3. Os herdeiros devem ter interesse e disponibilidade para assumir o negócio;
4. É preciso haver acordo com toda a família sobre o processo e as definições de funções e participação de cada um no negócio e todos devem aceitar seus papéis;
5. Comunicação: os filhos devem compartilhar com a família seus objetivos de vida e os pais devem deixar claro o que esperam para o futuro;
6. Respeitar a opinião e o ponto de vista do outro;
7. Se possível, conversar com um profissional que possa ajudar no planejamento do processo;
8. Por fim, gestão. Uma propriedade bem gerida e lucrativa atrai os herdeiros a continuar no negócio. Nisso, a assistência técnica é fundamental.
* Matéria de Niza Souza originalmente publicada na Revista Mundo do Leite de out/nov (páginas 18 a 25).