Dúvida foi encaminhada à Revista DBO pelo proprietário da Fazenda Cachoeirão, Nédson Rodrigues Pereira
As variações mencionadas por Nédson ocorrem devido à falta de um padrão nacional de limpeza de carcaça no Brasil e por especificidades industriais. Cada frigorífico estabelece critérios próprios de toalete, embora as empresas mais modernas e maiores tendam a trabalhar de maneira semelhante. Quando o pecuarista muda de abatedouro costuma observar diferenças na forma de retirada do sebo, da carne de sangria (extremidade do pescoço), das contusões etc. Isso gera desconfiança, mas, segundo Janaína Flor de Leles, proprietária de uma consultoria de abate em Goiânia, GO, 99% das falhas detectadas por sua empresa não são intencionais, como pensam os produtores. Devem-se mais à rotatividade da mão de obra ou ao ritmo acelerado de produção industrial. Segundo ela, como não existe um padrão único de limpeza que lhe sirva de referência, o produtor fica inseguro quanto aos procedimentos do frigorífico.
A toalete sempre foi causa de conflito dentro da cadeia pecuária bovina, porque ela interfere no peso final da carcaça e, consequentemente, no valor pago ao produtor. Em países como o Uruguai, existe um padrão de limpeza oficial estabelecido pelos órgãos governamentais competentes, o que não elimina totalmente a desconfiança dos produtores, mas, pelo menos, cria parâmetros de análise. No Brasil, não há movimento neste sentido. Têm ocorrido apenas iniciativas individuais de padronização, por parte de algumas indústrias, visando não apenas criar uma relação mais transparente com os fornecedores, mas também aperfeiçoar processos industriais, facilitando controles internos.
Padrão – Foi o que fez a JBS em 2011, ao descrever seu padrão de toalete em um manual de controle de qualidade. “A empresa cresceu por meio de aquisições. Havia muita variação de uma planta para outra, seja em decorrência de hábitos arraigados nas gestões anteriores, seja em função de equipamentos diferentes. A diretoria decidiu, então, que todas as unidades deveriam seguir o mesmos procedimentos de limpeza, inclusive para possibilitar avaliações de desempenho entre plantas”, explica Sílvio Sertório, gerente de engenharia de processos da JBS. Segundo ele, o padrão adotado pela companhia partiu de um mapeamento detalhado da rotina industrial, com definição de pontos críticos, que exigem maior atenção. Os procedimentos foram fotografados e descritos no PQ (padrão de qualidade) da carcaça, que pode ser consultado pelos produtores.
“Toda a carne e gordura de proteção permanece na carcaça. Retiramos apenas sebo, subprodutos reconhecidos como tal e itens condenados pelo SIF”, diz ele, explicando que a empresa tem procurando alinhar todas as unidades do grupo no que diz respeito aos equipamentos, utilizando facas rotativas e sugadores para aperfeiçoar o trabalho de toalete. Os pontos de atenção, onde há maior possibilidade de desvio, são verificados continuamente pelos supervisores de abate, que enviam relatórios semanais à gerência de suas respectivas plantas. “Esse sistema de autoavaliação tem funcionado bem, inclusive porque passa por checagens periódicas, realizadas por nossa equipe de especialistas em processos, que inspeciona o trabalho de todas as unidades no Brasil”, informa Sertório.
Segundo ele, quando o pecuarista reclama de algum procedimento é porque não conhece o padrão da empresa ou a planta ainda não está totalmente alinhada ao PQ, porque foi incorporada ao grupo há pouco tempo. “Procuramos, nesses casos, conversar com o fornecedor, explicar detalhadamente nosso padrão, inclusive convidando-o para assistir o abate, e, caso tenha ocorrido alguma falha de processo, providenciamos medidas corretivas imediatamente. Nosso compromisso é com a transparência das relações entre indústria e produtores”, relata o executivo. “O pecuarista pode até discordar do nosso sistema de toalete e, neste caso, não abater conosco, mas nunca desconfiar dele por falta de padronização. Trabalhamos pesado para que isso não aconteça e para atingir um padrão de excelência no abate”, salienta.
Treinamento – Uma das medidas tomadas pela empresa, nesse sentido, é o treinamento da mão de obra. “Quando 50 a 80 pessoas trabalham em ritmo industrial na linha de abate, podem ocorrer desvios em relação ao padrão estabelecido, mesmo porque há muita rotatividade nesse setor. Para evitar erros graves ou recorrentes, mantemos em todas as plantas um profissional especializado que chamamos de treinador”, explica Sertório. Seu papel é acompanhar os magarefes e ensinar quem está começando na atividade. “Trata-se de um trabalho manual, que não se aprende em livros, mas na prática. Então, ele ensina fazendo. O grande desafio de qualquer frigorífico é imprimir consistência a seu padrão de abate, fazer todo dia igual”.
Segundo Sertório, não apenas a JBS, mas vários frigoríficas trabalham com base em um padrão pré-estabelecido de toalete, que o pecuarista deve procurar conhecer antes de vender seus animais. “No que se refere, por exemplo, à ferida de sangria (parte hemorrágica que deve ser obrigatoriamente retirada por questões sanitárias), nós cortamos na veia, deixando o triângulo do pescoço. Outras empresas podem fazer diferente, mas o importante é que façam sempre igual e expliquem seus procedimentos ao produtor”, diz o executivo, salientando que o estabelecimento de um padrão nacional ajudaria a diminuir confusões, mas o problema é executá-lo. “Quem garantiria o cumprimento da regra?”, questiona.
Contusões e vacinas – Durante a toalete da carcaça também são retiradas lesões provocadas por contusões, em sua maioria ocorridas no embarque dos animais ou durante seu transporte até o frigorífico. O projeto de pesquisa “Na medida”, realizado pela Unesp-Botucatu em 2013, sob coordenação do professor Roberto Roça, e já mencionado na primeira edição do Portas Abertas, mostrou que as contusões geram perdas de até R$ 154/cabeça para o produtor. O frigorífico também perde, devido à mutilação de cortes e ao menor rendimento na desossa. No Mato Grosso, onde os animais foram acompanhados da fazenda ao abate, a principal causa de contusões constatada foi o transporte por estradas em péssimas condições. Problemas de infraestrutura são responsabilidade do governo (entram na conta do custo Brasil, que reduz a competitividade de toda a cadeia), mas a adoção de boas práticas, segundo Roça, pode ajudar a minimizar perdas.
A conscientização dos pecuaristas, o treinamento dos caminhoneiros e o manejo racional no pré-abate possibilitaram à JBS reduzir o índice geral de contusões de 20%, em 2011, para 12% em 2014. Os abscessos por reação vacinal também detectados durante a toalete da carcaça são outra fonte de perdas, estimadas por Roça em até R$ 50/cabeça, com a arroba a R$ 115 na época do estudo. Essas perdas decorrem tanto da aplicação inadequada do medicamento (dosagem errada) quanto dos componentes usados na vacina. Tanto as lesões por transporte quanto os abscessos implicam na retirada e condenação de porções consideráveis de músculo. “Trata-se de um problema que afeta a todos os elos da cadeia e somente poderá ser resolvido em conjunto”, diz o pesquisador.
* Matéria originalmente publicada na Revista DBO de julho de 2015 (páginas 38 e 39).
Maristela Franco, Revista DBO
Esta é a quinta edição do Projeto Portas Abertas, um canal criado por DBO para comunicação entre a indústria e os pecuaristas. Você pergunta, nós respondemos. Participe enviando suas perguntas para o e-mail maristela@revistadbo.com.br.