Por Guilherme Sicca Lopes Sampaio, médico-veterinário, doutorando em Saúde Animal, Saúde Pública Veterinária e Segurança Alimentar pela FMVZ/Unesp
O resfriamento rápido e a manutenção da cadeia do frio estão entre as principais condutas para controlar o crescimento microbiano, retardar a deterioração e estender a validade comercial de carnes. O resfriamento das carcaças é considerado ponto de controle em sistemas APPCC (Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle), pela sua capacidade de reduzir contagens bacterianas em razão da redução da temperatura e da atividade de água superficial. Entretanto, durante o resfriamento podem ocorrer expressivos prejuízos às indústrias em decorrência do processo depreciativo conhecido como cooler shrink, caracterizado pela perda de água por gotejamento, exsudação pelos tecidos e evaporação superficial, resultando em perda de peso pela carcaça e menor rendimento de cortes. Também podem ocorrer desidratação superficial e alteração da cor, que são prejudiciais à aceitabilidade pelo consumidor.
Estudos brasileiros recentes descrevem perdas de peso entre 0,40% e 2,23% para carcaças bovinas após 24 horas de resfriamento. Ou seja, para uma perda média de 2%, significa dizer que a cada 100 carcaças que entram na câmara de resfriamento, somente 98 saem, pois duas delas evaporaram. Além disso, embora ainda não controlado pelas indústrias brasileiras, perdas de peso adicionais de até 1% podem ocorrer na estocagem de quartos nas câmaras que abastecem a desossa (câmaras pulmão).
Devido ao elevado diferencial de pressão de vapor d’água entre o ar e a carcaça, as primeiras 4 a 6 horas do resfriamento são críticas e responsáveis pela quase totalidade das perdas por evaporação. Essa diferença diminui ao longo do resfriamento à medida que a carcaça perde calor. Portanto, a perda por evaporação é contínua, mas de intensidade decrescente.
Além de características extrínsecas, algumas características intrínsecas às carcaças devem ser consideradas a fim de ajustar o sistema de resfriamento e minimizar as perdas por evaporação. Dentre elas, estão: o tamanho e o peso da carcaça, mas principalmente, o seu acabamento de gordura, que além de prevenir a desidratação, altera o calor específico e a condutividade térmica da mesma, o que influirá nos cálculos da carga térmica e nos ajustes operacionais do sistema de resfriamento.
Dimensionamento da câmara de resfriamento
A principal ação para minimizar o custo gerado pela perda por evaporação corresponde ao correto e adequado dimensionamento da câmara no que se refere à compatibilidade de sua forma construtiva com seu sistema de refrigeração, de modo a gerar uma baixa taxa de remoção de umidade do ar.
Dentre os aspectos fundamentais que devem ser considerados na definição de uma câmara de resfriamento, estão: o cálculo preciso da carga térmica total e as suas parcelas de calor sensível e latente; o dimensionamento e a seleção da capacidade dos evaporadores; assim como os parâmetros de projeto (p. ex.: materiais isolantes, posição dos equipamentos e espaçamentos) e de operação do sistema de refrigeração (p. ex.: temperatura, ventilação e distribuição das carcaças nos trilhos).
O cálculo da carga térmica total deve levar em consideração o calor transmitido através das paredes, piso e teto; o calor decorrente de infiltração (p. ex.: abertura de portas); o calor devido ao produto (p. ex.: carcaças) e à embalagem (caso presente); o calor cedido pelas pessoas, pela iluminação, pelos motores e pelo degelo dos evaporadores; e, em alguns casos, considera-se também um adicional de segurança. Além disso, alguns parâmetros de operação do sistema de refrigeração, como a temperatura e velocidade do ar, exigem o cálculo prévio dos condensadores e evaporadores (capacidade, quantidade e disposição). Somente a partir desses cálculos pode-se então projetar a planta da câmara com seus respectivos materiais isolantes, espaçamentos, equipamentos e canalizações do fluido frigorífico.
A importância do adequado dimensionamento deve-se ao fato de que, dentro do evaporador, quanto maior for a diferença entre a temperatura do ar de entrada e a temperatura da serpentina, maior será a condensação de água no evaporador (o ar frio retém menos água por metro cúbico). Consequentemente, menor será a quantidade de vapor d’água presente no ar de saída, o que resultará em menor umidade relativa do ar e maior perda de peso das carcaças por evaporação. Além disso, haverá uma menor eficiência dos evaporadores (serpentina com excesso de gelo) e um maior tempo para degelo.
A baixa umidade relativa, principalmente quando combinada à alta velocidade do ar, irá promover as mais elevadas taxas de perda de peso das carcaças. Entretanto, quando a umidade relativa se encontra alta, a temperatura e a velocidade do ar pouco influirão sobre as perdas por evaporação. Outro ponto crucial consiste em manter um adequado espaçamento entre as meias-carcaças nos trilhos da câmara, geralmente de 0,5 metro, visto que espaçamentos insuficientes comprometem o resfriamento (prejudicam o fluxo de ar) e espaçamentos excessivos agravam as perdas por evaporação.
A fim de corrigir uma inadequada condição de projeto e/ou de operação, ou mesmo tentar minimizar perdas de peso da carcaça consideradas inevitáveis em um sistema adequado de resfriamento (de 0,7% a 1,5%), algumas ações que atuem no problema (baixa umidade relativa) têm sido tomadas para minimizar as perdas por evaporação, tais como: a aspersão de água gelada e o revestimento das carcaças com filme plástico.
Aspersão de água gelada durante o resfriamento
A aspersão de água fria durante o resfriamento de carcaças, ou Spray Chilling, tem sido amplamente utilizada nos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Europa com o intuito de minimizar as perdas por evaporação, sem alterar a taxa de resfriamento e a condição higiênico-sanitária das carcaças. Inicialmente denominada Clor-Chil, esta técnica foi desenvolvida e patenteada nos Estados Unidos na década de 1970 pela Swift & Company. Mas somente na década de 80, após a quebra da patente e alguns aperfeiçoamentos, a mesma passou a ser adotada pelas demais indústrias norte-americanas.
No Brasil, essa técnica foi aprovada e regulamentada pela Resolução nº 2, de 9 de agosto de 2011, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), com os seguintes objetivos expressos: “diminuir o tempo de queda da temperatura superficial para 5°C e reduzir a perda de peso das meias-carcaças devido à ventilação forçada”. O sistema consiste em uma sequência de tubos de PVC (Policloreto de Vinila) dotados de bicos aspersores que são dispostos paralelamente aos trilhos das câmaras. O sistema automatizado faz a aspersão de água potável (entre 0,5 e 1 ppm de cloro) e gelada (não superior a 2°C), com uma programação predefinida que controla o tempo total, a duração dos ciclos de aspersão e o intervalo entre os ciclos (Figura 1).
Desde a década de 70, essa técnica tem sido amplamente estudada e, embora os resultados sejam muito heterogêneos, principalmente por conta das inúmeras variações do sistema (instalações e protocolos), de um modo geral não foram verificados prejuízos à condição higiênica e sanitária das carcaças, conforme também observado em 2003 pelo grupo de pesquisa do professor Albenones José de Mesquita, da Universidade Federal de Goiás (UFG). Também tem sido verificado que o sistema não compromete a taxa de resfriamento, podendo inclusive ocorrer o aumento desejável da mesma, assim como, geralmente, não eleva a umidade superficial da carcaça resfriada. Em alguns países, a opção por essa técnica também facilita o uso de sistemas de descontaminação de carcaça dentro da câmara de resfriamento.
Entretanto, conforme estudo brasileiro publicado em 2010 pelos professores Cristiano Sales Prado, da UFG, e Pedro Eduardo de Felício, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que avaliaram o sistema Spray Chilling com um protocolo de ciclos intermitentes de 30 segundos de duração e 10 minutos de intervalo, durante as seis primeiras horas de resfriamento deve haver um rígido controle e fiscalização do sistema de aspersão para prevenir o ganho de peso pela carcaça, o que pode configurar fraude econômica. Além disso, deve ser monitorada a exsudação (drip) dos cortes embalados, visto que esses autores também observaram maior exsudação naqueles originados de carcaças aspergidas.
Segundo o engenheiro de alimentos Bassem Sami Akl Akl, diretor técnico da empresa JBS, o melhor dimensionamento das câmaras frigoríficas, somado ao uso do sistema Spray Chilling (Figura 2), praticamente solucionaram os problemas com perdas de peso durante o resfriamento de carcaças bovinas nas unidades da JBS, sendo hoje possível trabalhar com perdas médias de 0,5% a 0,8%, em contraste com perdas médias de 1,5% a 2,0% nas câmaras que não apresentam o sistema. Entretanto, ele salienta que o sistema é complexo e várias condutas devem ser tomadas para o total controle do mesmo, tais como: câmaras frigoríficas impermeáveis à água e com fumigação periódica; controle da potabilidade e da temperatura da água utilizada; programação totalmente automatizada da aspersão e com acesso controlado; controle informatizado do peso individual de 100% das carcaças de forma a assegurar que não haja ganho de peso; análises microbianas regulares das carcaças; controle da condensação [p. ex.: câmara quente (≥ 20°C) quando entrarem as carcaças]; controle da temperatura das carcaças (p. ex.: temperatura superficial menor ou igual a 5°C em até 10 horas); e controle das estruturas (p. ex.: paredes, trilhagens e unidades de frio) para manutenção das condições higiênico-sanitárias das câmaras de resfriamento.
Como diferenciais do sistema, Bassem Sami Akl Akl aponta que para garantir eficiência, economia e sustentabilidade no uso da água, o sistema foi validado empiricamente e, embora haja certa variação entre as unidades, passou a ser realizado somente nas primeiras horas do resfriamento, com duração de ciclos e intervalos ajustados de forma a otimizar os resultados. A aspersão inicia-se individualmente para cada trilho carregado e não mais após o carregamento total da câmara. Dessa forma, houve uma redução de 50% no consumo médio de água por carcaça aspergida.
Revestimento de carcaças com filme plástico
Em países onde a técnica do Spray Chilling tem seu uso proibido ou restrito, uma técnica opcional é o revestimento das meias-carcaças com filme plástico (stretch) durante o resfriamento. Estudos realizados na década de 70 nos Estados Unidos demonstraram a eficiência do revestimento com filme de PVC na redução dessas perdas e na melhora do aspecto visual, porém, foram observados aumentos na umidade superficial, redução na taxa de resfriamento e, em alguns casos, maiores contagens bacterianas na superfície das carcaças.
Em 2012, pela Universidade Federal Fluminense (UFF), nós avaliamos essa técnica nas condições brasileiras (Sampaio et al., 2015). Acreditávamos que pela evolução no abate de bovinos, essa técnica poderia não apresentar as mesmas deficiências observadas na década de 70. Foram avaliadas 90 carcaças de bovinos Nelore, machos não castrados, peso médio de 260 kg e 90% com cobertura de gordura ausente ou escassa. Somente as meias-carcaças esquerdas foram revestidas com filme de polietileno (Figura 3). Após 24 horas de resfriamento (em condições de Maturação Sanitária; temperatura ≥ 2°C por 24 horas), o filme plástico era retirado. No primeiro estudo, realizado com 30 carcaças, observamos a eficiência do filme plástico na redução nas perdas de peso em 55,2% (2,23% para 1,00%), 43,1% (2,53% para 1,44%) e 36,0% (2,92% para 1,87%), respectivamente após 24, 48 e 72 horas de resfriamento.
No segundo estudo, realizado com as demais 60 carcaças, verificamos que, nas meias-carcaças que foram revestidas, houve crescimento de bactérias mesófilas aeróbias (1,25 para 1,40 log UFC/cm²) e enterobactérias (aumento de 1,20 log UFC/cm²); além disto, houve aumento de 55,7% na detecção de enterobactérias nestas carcaças. Ao término das 24 horas de resfriamento, quando comparamos as meias-carcaças com e sem o filme plástico, as contagens de mesófilos aeróbios (1,40 contra 0,85 log UFC/cm²), enterobactérias (diferença de 1,20 log UFC/cm²) e Staphylococcus aureus (diferença de 1,05 log UFC/cm²) foram maiores naquelas que foram revestidas. Em nenhum momento verificamos diferenças para Escherichia coli. Observamos também que as meias-carcaças que foram revestidas apresentaram menor taxa de resfriamento, sendo inclusive a temperatura interna do traseiro quase 1°C maior após 24 horas de resfriamento (7,67°C contra 6,70°C).
Confira aqui a íntegra do artigo do médico-veterinário Guilherme Sicca Lopes Sampaio (Unesp/Botucatu) na mais recente edição da revista CarneTec.