Reprodução de capa de obra da coleção da entrevistada Sandra Mian
Quando se trata de tendências para a indústria de alimentos, uma das maiores especialistas da atualidade é a consultora brasileira Sandra Mian. Engenheira de alimentos formada pela Unicamp, ela utiliza diversos ramos do conhecimento para embasar suas teses, muito apreciadas nos P&Ds de diversos países, como o Canadá, onde reside atualmente. A seguir, conheça algumas das opiniões de Sandra, em uma entrevista recheada de informações estratégicas para indústrias de todos os portes. Uma segunda parte da entrevista será publicada em breve na revista CarneTec. Aproveite a aula! Essa é para imprimir e distribuir.
CarneTec: Todo início de ano é propício para exercitar projeções. Como você projeta a indústria da carne brasileira para as próximas décadas? De que forma assuntos como sustentabilidade, bem-estar animal, saudabilidade, farão parte da decisão de compra do consumidor do futuro?
Sandra Mian: Eu vejo que as sociedades em geral, em todo o mundo, estão cada vez mais preocupadas com essas três questões vitais, que de alguma forma se cruzam em algum ponto. As empresas que não se preparam seriamente para responder a essas questões correm sérios riscos. Já quem tomar a frente mesmo antes de regulamentos e restrições governamentais ou de comércio internacional, estas vão assumir a liderança.
Nos EUA, a cadeia de supermercados Whole Foods, por exemplo, liderou o movimento de sustentabilidade e ética animal quando poucos falavam sobre isto e diziam que era antieconômico. Resultado: a Whole Foods hoje é talvez a rede de supermercados mais “amada” da geração Y (millennials) e uma das que apresentam maior rentabilidade por m² de área de loja. Uns 20 anos atrás havia gente que jurava que o consumidor nunca pagaria mais por produtos orgânicos ou pelo melhor tratamento dos animais. Erraram e feio!
As empresas brasileiras deveriam avaliar mais as tendências globais e não apenas reagir a curto prazo. Criar estratégias em função dessas grandes tendências de comportamento globais e de mudanças tecnológicas. Se a indústria de carnes começar a fazer isso, seu lugar estará garantido no cenário internacional. Caso contrário, outros países poderão tomar o lugar do Brasil.
Acho que a História é realmente uma excelente conselheira e deveríamos ver um pouco mais o que se passou no passado para ajudar a nos guiar no futuro: tivemos o ciclo da cana-de-açúcar, da borracha, do ouro, do café. O caso da borracha, por exemplo, é talvez o melhor para usarmos como “sinal de alerta”. Se repetirmos os erros do passado estamos fadados a fracassar. Se em vez disso aprendermos com eles, o futuro da nossa indústria de carnes será dos mais promissores!
Diante do movimento cíclico da economia mundial, entre uma crise e outra, muitas empresas fecham as portas, outras são criadas, enfim, qual é o seu conselho para os frigoríficos de menor porte continuarem firmes no mercado? E para os grandes, há limites para sua expansão global?
Momentos de crise e de ameaças são também grandes momentos para novas oportunidades.
Em épocas de crises econômicas há uma tendência generalizada em se querer abaixar os custos… a todo custo! E com isso muitas vezes a qualidade final dos produtos cai também. Eu acredito muito no desenvolvimento de produtos para nichos de mercado e em manter-se a qualidade do produto num tal nível que o consumidor acabe sendo fiel à marca e à empresa. Por exemplo, no México, país onde eu tenho trabalhado com frequência nos últimos 3 ou 4 anos, durante o auge da crise viam-se os consumidores mudarem de marcas de produtos de higiene pessoal, limpeza, etc. Mas dificilmente mudaram as marcas preferidas de alimentos.
Acredito que as pequenas e médias empresas precisam criar vínculos duradouros com o consumidor – e isto evidentemente não se faz de um dia para outro ou no meio de uma crise! Essa ligação da empresa com o usuário se faz, primeiro, com produtos únicos, especiais, de alta qualidade e diferenciados (não necessariamente com preço mais baixo, já que mesmo durante as crises os produtos ditos “de luxo” continuaram a ter crescimento substancial no mundo todo). Em seguida, é preciso que haja uma coerência entre o que se faz e o que se diz. Em terceiro, é preciso “contar essa história” ao usuário: story telling! Hoje, com as mídias sociais, é bem mais simples esse contato. Mas simples não quer dizer fácil… Não basta criar uma página no Facebook ou “tweetar” uma ou duas vezes por semana. Há um método para conseguir visibilidade nas mídias sociais. Eu costumo dizer que o processo se passa mais ou menos da seguinte forma: “primeiro eles te veem; depois eles te curtem; se gostarem do que você está mostrando te seguem; e no final acabam comprando teu produto”.
Mas como ponto principal eu diria que as pequenas e médias empresas precisam desenvolver estratégias a longo prazo, ter linhas de produtos que garantam o “break-even point”, mas também estarem sempre pensando em novas possibilidades. Para essas empresas, criatividade e inovação são ainda mais importantes do que para as grandes. Diferenciar-se e inovar, surpreendendo e cativando o consumidor. E fazendo os produtos que esse consumidor – teu nicho – quer e não o que você acha que ele poderia querer ou comprar. Há uma imensa diferença entre esses dois pontos e infelizmente muitas empresas ainda produzem “só que o dá para fazer”. Técnicas de inovação e desenvolvimento de novos produtos como o “design thinking” poderiam ser ferramentas poderosíssimas para essas pequenas e médias empresas, exatamente como o são para as “start-ups” de tecnologia e serviços.
O Brasil é um país fantástico quando comparado com economias maduras, como a canadense, por exemplo. Só o estado de São Paulo tem a população inteira do Canadá! Mesmo que o número de consumidores de classe média (poder aquisitivo) seja proporcionalmente menor no Brasil que no Canadá, a massa crítica populacional e a diversidade de consumidores são muitíssimo maiores. Tenho visto empresas aqui no Québec [Canadá], por exemplo, devido ao mercado extremamente pequeno e competitivo, quase saturado, voltando-se para a exportação. Isso dificilmente seria necessário no Brasil! Novamente, essas empresas têm de encontrar seus nichos e consumidores que não as abandonem nem mesmo nas piores crises.
Quanto ao mercado global, que é o campo das grandes empresas, estamos vendo um certo recuo com relação à globalização. Mas há uma diferença entre uma indústria do setor de carnes e uma indústria de bens de consumo: não é possível produzir carne em cada país consumidor segundo o volume necessário para abastecer estes mercados. O que pode ocorrer é que produtos sejam transformados localmente e que as grandes empresas tenham de focar ainda mais na carne como commodity, como matéria-prima. Acho muito menos provável o fechamento do mercado de carnes que o de automóveis, por exemplo. Mas, na minha opinião, as grandes empresas já estão atentas a essas mudanças globais e devem, neste momento em que conversamos, estar preparando estratégias para enfrentar estes problemas.
Em uma frente, há a necessidade de alimentar uma população mundial crescente, com cada vez menos recursos naturais para explorar. Em outra, há a necessidade de atender nichos específicos, tendências sofisticadas, etc. Diante desse cenário, qual é a importância da pesquisa, dos avanços tecnológicos, para suprir essas duas frentes?
Sem dúvida, um dos maiores desafios que a humanidade vai enfrentar é o de alimentar os bilhões de habitantes com recursos limitados. Por outro lado, sabemos que o que se perde na cadeia produtiva é enorme. Eu vejo como um primeiro passo o controle dos desperdícios e o aproveitamento total de TODA A MATÉRIA-PRIMA, principalmente matéria-prima de tão alto nível quando as proteínas animais. Acho que aí a indústria deveria investir muito mais não só em tecnologia, mas também em novas formas de geração de ideias. E aqui não falo somente de processos industriais, mas principalmente de gestão de produção, acompanhamento de cada etapa da cadeia produtiva, novas técnicas agrícolas, produção integrada de alimentação animal e criação, etc. Ou seja, em primeiro lugar, antes de pensar como produzir mais, temos de pensar em como desperdiçar menos. Aí é que eu vejo que metodologias como o “design thinking” podem ser ferramentas incríveis para geração de ideias.
Eu sou uma otimista nata e acredito que o ser humano tem uma capacidade inventiva e de resiliência incríveis. E já vemos iniciativas em ciência e tecnologia trabalhando no sentido de criar novas formas de produção de proteínas a partir de fontes não convencionais. Talvez num futuro distante a indústria de carnes seja totalmente diferente do que conhecemos hoje… Mas o futuro próximo eu vejo de forma bem mais simples: mudar as formas de consumo e minimizar drasticamente os desperdícios. Só isso já é suficiente para alimentar um terço da população mundial, se todos os elos da cadeia alimentar estiverem completamente engajados neste processo.
Sou uma apaixonada por história e houve um fato recente na história da alimentação que nos mostrou que isso é possível. Durante a 2ª Guerra Mundial, os EUA criaram um plano de racionalização do consumo alimentar, principalmente de produtos de origem animal (carnes em geral, leite e manteiga). O objetivo era alimentar bem a população americana e, ao mesmo tempo, fornecer estes alimentos aos combatentes e aliados na Europa. Isso porque grande parte da população estava envolvida na guerra – os homens nas frentes de batalha ou nas indústrias bélicas – e não havia como aumentar a produção agrícola sem retirar mão de obra das indústrias, já que inclusive as mulheres foram para o mercado de trabalho completar os postos que os homens deixaram livres para irem à guerra.
A solução encontrada foi a racionalização do consumo e o não desperdício. Sem NENHUM AUMENTO DE PRODUÇÃO, só com essas medidas, os EUA conseguiram alimentar sua população e enviar alimentos em quantidades incríveis para os esforços de guerra. Os americanos continuaram a comer carnes… mas outros cortes e formas além do tradicional “steak”. Infelizmente, muitas vezes, esquecemos que as soluções simples são as melhores para problemas complexos.
Quanto aos nichos de mercado, eles estão cada vez mais presentes. Na verdade, hoje não há mais “um mercado” para “um produto”. E aqui é que vejo uma oportunidade de ouro para as pequenas e médias empresas. Elas, por poderem trabalhar de forma mais artesanal, são as que estão em melhor posição para atenderem esses nichos de mercado, sobretudo os menores e mais exigentes. Entretanto, ter um público consumidor menor não significa menos rentabilidade. Ao contrário! Mas novamente eu vejo aí a necessidade de investimento, não necessariamente em ciência e tecnologia, mas em CIÊNCIAS HUMANAS. Entender profundamente esse novo consumidor, seus anseios, o que lhe faria feliz. Buscar ideias inovadoras – algumas delas paradoxalmente podem ser encontradas no passado! – que encantem e surpreendam esse consumidor. Há que se trabalhar com uma visão humana do desenvolvimento de produtos. Para essas empresas, será vital o conhecimento de sensorialidade, antropologia e sociologia da alimentação, psicologia do comportamento alimentar, etc. São novas maneiras de ver os processos de P&D, onde o lado humano está intimamente associado aos conhecimentos técnicos.
Nos últimos anos, temos visto diversos grupos multidisciplinares trabalhando nesse sentido. Eu mesma trabalho exatamente nessa linha, usando conceitos das mais distintas áreas de conhecimento para se chegar aos processos de ideação. No meu caso, não só para a indústria de alimentos, mas também para a indústria de bens de consumo.
Como um dos principais provedores globais de carnes, o que o Brasil tem a aprender e o que tem a ensinar para o mundo na área?
Eu acredito que antes de tudo os produtores brasileiros de carne deveriam se conscientizar do imenso poder que eles têm nas mãos. Carne é um dos gêneros alimentícios mais importantes e preciosos da humanidade e não deveria ser vendida “a preço de banana”. O Brasil já passou por outros ciclos de exportação de matéria-prima: açúcar, borracha, café… E agora estamos exportando carnes. Exportar carne é também exportar água, território, meio ambiente, “landscape”. Deveríamos de alguma forma trabalhar para que esses fatores fossem reconhecidos no preço final do produto e também oferecer mais produtos com valor agregado. Os melhores cafés do mundo são tidos como os italianos… mas a Itália não produz café! A Itália simplesmente aprendeu a agregar valor a um produto que, na sua grande maioria, vem do Brasil. As melhores mostardas do mundo são francesas… mas as sementes de mostarda são produzidas não na França, mas em países como Canadá e Índia. Isso eu acredito que é algo que fazemos muito pouco no Brasil, agregar valor e não vender somente matéria-prima.
O Brasil, por outro lado, tem muito o que ensinar ao resto do mundo. Temos um país com características físicas invejáveis: o gado pode ser criado no Brasil da maneira mais natural possível, em liberdade, consumindo pastagens em vez de rações. Enquanto outros países criam gado em condições deploráveis, o Brasil pode ser citado como um exemplo nessas áreas. Podemos ensinar ao mundo que é possível integrar produção animal e meio ambiente.
Acredito realmente que esse deveria ser um dos pontos fortes do marketing e da promoção das carnes brasileiras: ASSOCIAR NOSSAS CARNES COM O NOSSO LANDSCAPE. Carne e territorialidade. Voltar a produzir raças ancestrais. Associar um “label” às carnes brasileiras, exatamente como os italianos fazem com a raça chiannina (bovinos) e os franceses com o “poulet de Bresse” (frango de Bresse).
Como você vê a participação da mulher em um setor como o da carne? Desde o chão de fábrica, passando pelo P&D, aos cargos administrativos, a mulher conquistou o seu espaço nessa indústria?
Eu vejo de forma muito positiva, evidentemente. Mas vejo também que infelizmente as mulheres ainda não conseguiram conquistar todo o espaço a que têm direito. E isso não é só no Brasil, obviamente. Alguns países estão mais adiantados que o Brasil nesse aspecto, outros bem mais atrasados. Felizmente as mulheres estão avançando em áreas que há apenas algumas décadas nem poderíamos imaginar que seríamos aceitas. Mas ainda há muito trabalho pela frente… sobretudo para conseguirmos atingir as posições mais altas na direção das empresas.
Por outro lado, na ponta final da cadeia, já não é mais só a mulher que lida com a preparação dos alimentos em casa: muitos homens passaram a ocupar esta função. E mesmo a conta do restaurante deixou de ser exclusividade masculina. As mulheres da indústria da carne estão contribuindo mais para ajudar na percepção dessas mudanças?
Eu acredito que sim. E não só por estarem trabalhando numa indústria tida como “masculina”. Acho que há um papel extremamente importante das mulheres que trabalham nas equipes de P&D e marketing dessas empresas. Elas, por vivenciarem essa nova realidade, estão mais capacitadas a impulsionar mudanças de forma a que os produtos finais sejam adequados a esses novos tipos de família. Elas conseguem ver os “dois lados da medalha” talvez de maneira mais direta que os homens. Em geral, a indústria de alimentos brasileira pensa muito na mulher como a usuária final. Mas o “usuário final” está mudando de maneira drástica. As famílias estão mudando. Jovens estão cada vez mais autônomos dentro das famílias, homens estão participando cada vez mais das tarefas domésticas e a cozinha foi melhor e mais rapidamente aceita pelos homens. Fora das épocas de crise há uma tendência crescente em se viver só, em unidades independentes. E não só homens mas cada membro dessas “novas famílias” tem percepções diferentes de produtos, embalagens, do que é “prático” ou “saudável”. As mulheres da indústria da carne formam parte integrante dessas mudanças, elas as estão vivenciando “pelo lado de dentro e de fora”. E exatamente por isso eu as vejo como fundamentais também no processo de encontrar soluções para ajudar a tornar melhor e mais fácil a vida dessas novas famílias.
Como era trabalhar neste setor no Brasil do século 20 e como é hoje? Quais são as principais diferenças e evoluções?
Eu saí de uma faculdade de engenharia de alimentos, a FEA (Unicamp), em 1983. Mas ao contrário da esmagadora maioria dos colegas, não fui trabalhar numa indústria de alimentos. Por isso eu não posso falar a partir da minha perspectiva pessoal como era trabalhar numa indústria do setor de carnes. Mas posso falar um pouco da minha experiência pessoal, que não foi das mais ortodoxas: fui trabalhar numa imensa metalúrgica no ABC paulista, calculando carga térmica de refrigeradores e freezers… Era a única mulher com cargo técnico na engenharia de uma empresa com 7,5 mil funcionários. Aliás, além de mim, havia duas outras mulheres: a secretária e a copiadora. Imagino que uma mulher que foi nessa mesma época trabalhar numa linha de produção de uma indústria de carnes deve ter se sentido um pouco como eu: tendo que provar a cada instante que era capaz e igual a qualquer homem e, infelizmente, algumas vezes provar até que era melhor que os colegas do gênero masculino. No meu caso, havia ainda o estereótipo de que uma engenheira “normalmente” se vestiria em jeans, camiseta e sapato baixo de sola grossa. Para provar que eu poderia continuar sendo mulher, feminina, e desempenhar bem minhas funções de engenheira, eu fazia exatamente o contrário no caso das expectativas com relação à minha indumentária. Se ainda hoje há um certo preconceito com relação às mulheres em algumas áreas de atividade, naquela época era muito pior. Mas outras passaram antes de nós e abriram o caminho para que nós, profissionais, pudéssemos também conquistar nosso espaço. Naquela época, nossa responsabilidade era ainda maior que hoje porque além de garantir nossos empregos, funcionávamos como uma espécie de exemplo para as profissionais que viriam depois de nós. Diversos exemplos de mulheres naquela época permitiram uma abertura do setor para as novas gerações. Em todas as indústrias, em todas as áreas e não só na indústria de carnes.
Para mim a grande diferença hoje é que os jovens das novas gerações, principalmente os millennials, são muito mais tolerantes e abertos. Naquela época tínhamos, como mulheres, que convencer nossos colegas de que podíamos fazer tudo o que eles faziam. Cada dia era como desbravar um pedaço de floresta virgem. Hoje é muito raro ver um colega de trabalho com essa visão meio preconceituosa e arcaica com relação às colegas mulheres.
Outro ponto que mudou muito é que hoje a tecnologia está presente em cada etapa da produção industrial. Muito do trabalho que necessitava de grande força física – e aqui penso mais nas linhas de produção – hoje é mecanizado. Ou seja, a tecnologia nos ajudou muitíssimo porque não é o mais forte que é melhor. O melhor é: quem é capaz de operar de forma mais eficiente uma máquina ou um equipamento. Outro avanço no meu ponto de vista foi a introdução de técnicas de gerenciamento que valorizam o trabalho em grupo e participação de todos para um melhor resultado global. Uma empresa em que se aplicam normas como a ISO ou sistemas como o HACCP não pode deixar de lado nenhum dos seus funcionários, seja ele homem ou mulher, porque o resultado final depende do engajamento contínuo de todos. Tudo isso, mais a evolução da sociedade com relação às questões de gênero, estão facilitando o trabalho das mulheres nessas indústrias.
Como comentei anteriormente, ainda temos etapas a vencer, sobretudo para chegarmos aos postos mais altos das empresas. O famoso “teto de vidro” ainda não foi quebrado, infelizmente. Mas já está com inúmeras rachaduras! O caminho foi aberto no século 20, as novas gerações de mulheres não precisam mais “abrir picadas na floresta” como fizemos. O século 21 se anuncia muito positivo para as mulheres nesse aspecto e tenho certeza que a indústria de carnes está inserida nesse movimento evolutivo, de abertura e aceitação de todos. Tudo e todos que agregam valor são bem-vindos.
Você é apaixonada pelos produtos cárneos. Como começou essa paixão?
Na verdade, eu sou apaixonada por comida. E carne é comida, mas não qualquer comida. Eu sempre senti isso intuitivamente quando era pequena, mas só fui entender realmente como esse processo de valorização da carne e seus derivados acontece após ter estudado antropologia, sociologia e história social.
Minha grande mestra na área da alimentação foi minha avó paterna, a Nonna Assumpta. Uma mulher fortíssima, viúva aos 42 anos, que criou seus filhos praticamente sozinha. E ajudou a criar os netos. Muito do que eu sou como pessoa e como profissional eu devo a ela. Eu hoje compreendo que minha Nonna já era adepta de movimentos como o Slow Food muito antes do Carlo Petrinni ter dado um nome e uma forma a essa filosofia de vida. Com a Nonna eu aprendi os princípios básicos da ISO: fazer bem desde o primeiro instante para não ter que voltar e corrigir. Aprendi com ela os pontos-chaves do HACCP. E, sobretudo, o imenso respeito pela comida, por cada ingrediente.
As galinhas e frangos naqueles tempos não eram comida para todos os dias porque as galinhas eram poedeiras e, usando um termo figurado, mas que veio da realidade europeia, “não se mata a galinha dos ovos de ouro”. O porco, então, este era o rei! Dele nada se perdia. Hoje, tendo o francês como meu primeiro idioma (eu vivo há 21 anos no Québec, Canadá, uma província francofônica), uso muito uma antiquíssima expressão francesa: “tout est bon dans le cochon”! Ou como os espanhóis (o lado do meu avô paterno) diriam: “do porco só não se come o grito que ele dá antes de morrer”.
Nos melhores bistrôs franceses em Paris são servidos até hoje os “tabliers du sapeur” (literalmente, “o avental do bombeiro”, tripas empanadas e fritas); fígado, timo de vitela, “pieds de porc à la Saint-Ménehault” (pezinhos de porco cozidos em caldo aromático, depois passados em manteiga derretida e pão seco ralado e grelhados), etc, etc. Em Roma se come com gosto as “coda alla vaccinara” (rabo ensopado) e a “trippa ala romana” (tripa à moda de Roma, ensopada). Numa das melhores revistas de culinária italiana do mundo, La Cucina Italiana, eu vi esta semana uma receita incrível de uma salada feita, pasmem, com “nervetti”, cartilagens e nervos de vitela! E a revista indica claramente que os “nervetti” podem tanto ser preparados em casa, pelo cozimento lento de “mocotó”, como podem ser comprados já prontos nos supermercados. Esse imenso respeito pelos ingredientes foi algo que a Nonna me ensinou e que eu nunca esqueci.
Mais informações: sandramian@videotron.ca