O Brasil acaba de ganhar os primeiros bovinos de um cruzamento industrial entre touros da raça brasileira Curraleiro Pé-Duro (Bos taurus taurus) e vacas nelore (Bos indicus indicus), de origem indiana. Os animais tropicais, que serão apresentados aos produtores nos próximos meses, são o resultado de seis anos de intensas pesquisas desenvolvidas pela Embrapa e a Universidade Federal do Piauí (UFPI), com recursos próprios das duas instituições. Esse cruzamento foi o primeiro entre essas duas raças feito com metodologia científica.
O novo bovino, criado em pastagens nativas, impressiona pelo desempenho zootécnico superior. Ele é mais precoce que o nelore, vai mais cedo para o abate, com apenas dois anos de idade e pesando 45 quilos de carne a mais nas mesmas condições de pastagem. Já o nelore é mais tardio, estando em ponto de abate aos três anos de idade. Se for terminado em regime de confinamento, o período é reduzido em até seis meses, aumentando ainda mais o peso. As pesquisas indicaram que o novo mestiço produz 20 quilos de carne macia por 100 quilos de músculo na carcaça. Em comparação, o estudo revela que o nelore produz apenas 16 quilos.
“O resultado aponta maior lucro para o produtor e indústria e o consumidor terá à disposição uma carne de melhor qualidade”, diz o pesquisador Geraldo Magela Côrtes Carvalho, que coordena o trabalho. O novo animal tem mais ganho de peso em menos tempo por um aspecto que o cientista faz questão de destacar: “ele tem uma estatura menor que o nelore e, por isso, consegue se desenvolver bem em menores piquetes, garantindo uma taxa de lotação na mesma pastagem até 20% maior na área delimitada. Esse aspecto é muito importante para o conforto do animal”.
Os testes realizados nos laboratórios da Embrapa Pecuária Sudeste, em São Carlos, no interior de São Paulo, comprovaram que a carne do animal é macia e saborosa. Foram feitos testes de maciez, acidez, perda de peso por cozimento, retenção de água e coloração, que revelaram a excelente qualidade da carne. O centro de pesquisa ainda executou testes com a pele. No Município de Timon (MA), o Frigorífico Frigotil, ,o maior do Nordeste, o mestiço passou por um exigente teste de carcaça, também com resultados positivos.
Em praticamente todos os aspectos, segundo Carvalho, o novo bovino apresentou um perfil diferenciado. “Ele traz a rusticidade do curraleiro pé-duro, que é adaptado ao ambiente tropical de quase todas as regiões do Brasil (calor, escassez de água e pastagens nativas); sendo ainda resistente a parasitas como verminoses, carrapatos, bernes e mosca-do-chifre”, garante.
Na alimentação, ele aceita muito bem as gramíneas e leguminosas nativas, cactos, arbustos, raízes e cascas de madeira. Enquanto isso, o bovino nelore, raça trazida da Índia e já consagrada como grande produtora de carne, requer uma alimentação à base de pastagens artificiais, segundo Carvalho. “No comparativo com o nelore, o novo bovino praticamente ganha em tudo”, assegura.
Adaptado às mudanças climáticas
O pesquisador explica que o sucesso do trabalho, iniciado em 2008, foi decorrente do fenômeno natural chamado heterose ou vigor híbrido obtido do cruzamento entre raças distantes. Ele explica que a heterose é o fenômeno pelo qual os animais resultantes de cruzamentos apresentam melhor desempenho do que a média dos pais. “A maioria dos cruzamentos entre os touros curraleiro pé-duro e as vacas nelore apresentou vigor híbrido, garantindo o sucesso da pesquisa”, revela.
Esse projeto tem três objetivos que, se alcançados em sua plenitude, podem mudar em pouco tempo o perfil da carne bovina no Brasil. O primeiro, praticamente atingido, busca melhorar a qualidade (maciez, sabor e coloração) e a oferta da carne nas regiões tropicais. O segundo quer atingir um alvo perseguido pelos cientistas há muito tempo: disponibilizar recursos genéticos adaptados às regiões quentes. O terceiro é integrar o curraleiro pé-duro ao agronegócio, afastando a raça da ameaça de extinção.
Para enfrentar um possível cenário de aquecimento global, a busca pela sustentabilidade da pecuária bovina nas regiões quentes é outro pilar das pesquisas com o curraleiro pé-duro. Carvalho, que é doutor em melhoramento genético animal, aponta as duas vantagens estratégicas dessa raça para viabilizar a pecuária em ambientes desfavoráveis à atividade. “A primeira é porque ele ocupa pouco espaço, permitindo uma carga animal maior. A segunda é a rusticidade do novo mestiço que não necessita do uso de medicamentos e, por isso, eleva a qualidade da carne”, detalha.
O frigorífico Frigotil, com capacidade para abater cinco mil bois por dia, aposta no trabalho dos pesquisadores da Embrapa e da UFPI, segundo o gerente industrial do frigorífico, Franklin Freire. Ele vê o banco genético do curraleiro pé-duro como um avanço para o melhoramento de raças nativas que podem contribuir com oferta de carne de qualidade ao mercado.
Na avaliação dele, as pesquisas devem avançar mais ainda na fase de terminação dos animais, para que eles tenham maior porte e mais ganho de peso. Na visão de Freire, para ter sucesso no mercado, o peso ideal de carcaça de um bovino resultado de cruzamento deve atingir no mínimo 17 arrobas (255 quilos), que é o peso-padrão de abate para frigoríficos industriais.
Pesquisa com outras raças
O trabalho dos cientistas utilizando o curraleiro pé-duro nos cruzamentos industriais está avançando também em outra direção. Há três anos, estão sendo feitos cruzamentos com as raças Angus Vermelho, de origem inglesa, e Senepol, desenvolvido nos Estados Unidos. Os primeiros exemplares dessas experiências têm apresentado animais com excelente performance de peso e tamanho. As avaliações de carcaça e maciez da carne começarão no primeiro semestre de 2016. Também no próximo ano, vão começar os cruzamentos entre touros do mestiço recém-desenvolvido e vacas de raças brasileiras, como a Caracu e a Crioula Lageana.
Tecnologias consagradas
Os pesquisadores usaram dois métodos de cruzamento já consagrados. Na primeira fase, foi usado o sistema de monta natural. A segunda etapa acelerou os estudos, e os cientistas passaram a utilizar a inseminação artificial com o uso da sincronia de ovulação. Nessa fase, a participação do professor Adalmir Souza, coordenador de reprodução animal da UFPI, e de estudantes de mestrado e doutorado em medicina veterinária da instituição foi decisiva para o avanço da pesquisa.
Eles trabalharam também na avaliação reprodutiva de machos e fêmeas e no uso das biotecnologias de reprodução, como coleta e congelamento de sêmen, embriões e fecundação in vitro. Hoje, o resultado dos estudos já está gerando várias teses de mestrado e doutorado, além de qualificar equipes especializadas em biotecnologias da reprodução animal na região Meio-Norte do Brasil.
A rusticidade como marca
A raça Curraleiro Pé-Duro foi formada no Brasil de animais vindos da Europa e chegou ao País pelas mãos dos portugueses, no período colonial. Os animais ganharam espaço, primeiramente, em fazendas dos estados da Bahia e Pernambuco. Depois, a raça foi levada para o Piauí, Maranhão, Minas Gerais e aos estados do Centro-Oeste. O Rio São Francisco teve importante papel na disseminação da raça.
Os exemplares que descenderam dos primeiros curraleiros pé-duro vindos de Portugal, segundo os historiadores, conseguiram se adaptar bem às condições ambientais adversas, principalmente do Nordeste. Eles suportaram longos períodos de seca, intenso calor e ataques de parasitas e insetos. Como resultado, a raça se consagrou como rústica e de fácil adaptação.
Hoje, o rebanho de curraleiro pé-duro no Brasil chega a quase cinco mil exemplares espalhados pelos estados do Piauí, Maranhão, Goiás, Ceará e Paraíba. O maior rebanho está concentrado no Piauí, com 3.500 exemplares, segundo a Associação Brasileira de Criadores de Bovinos Curraleiro Pé-Duro, com sede em Teresina.
A Embrapa mantém há 40 anos um núcleo de preservação da raça Curraleiro Pé-Duro numa fazenda experimental no Município de São João do Piauí, no sudeste do Estado. O plantel atual chega a 350 exemplares e é a base dos trabalhos de cruzamentos que são conduzidos desde 2008.
Mas o trabalho de conservação dessa raça é mais amplo. O Banco de Germoplasma Animal da Embrapa possui 16.853 doses de sêmen de 51 reprodutores. Destas, 12.010 doses de 35 touros estão na Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia (DF), e 4.843 doses de 16 touros estão na Embrapa Meio-Norte. O banco mantém também 148 embriões de 13 acasalamentos distintos.
Na fazenda Faveiro, no Município de Elesbão Veloso, no centro-norte do Piauí, a 154 quilômetros de Teresina, o empresário José Ferreira Dantas Filho mantém há 20 anos núcleos de conservação de animais ameaçados de extinção. Lá, 300 exemplares de curraleiro pé-duro vêm se reproduzindo normalmente com o apoio da Embrapa.
Entusiasmado com a atividade, Dantas Filho, que é um dos maiores conservadores de raças nativas da região, sempre tem uma resposta na ponta da língua aos questionamentos sobre a manutenção dos núcleos: “Quero contribuir com as futuras gerações, preservando as raças que ajudaram a colonizar o Piauí e o Nordeste brasileiro, como o curraleiro pé-duro”.
Fernando Sinimbu (MTb 654/PI)
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