“O antigo se torna novo outra vez” é um ditado popular, mas, à medida que a geração Y vem se desenvolvendo como potência econômica, esse ditado ganha um novo significado. Os indivíduos dessa geração são caracterizados de uma infinidade de formas; uma dessas características é que são nostálgicos, algo que se evidencia em sua alimentação.
Linguiças curadas a seco, ou de charcutaria, tornaram-se muito populares em meio a essa geração, juntamente com os apreciadores de iguarias e os amantes de alimentos produzidos regionalmente. Cada vez mais chefs de restaurantes refinados têm preparado alimentos de charcutaria em suas cozinhas, adegas e/ou investido em estufas. Esses tipos de alimentos têm sido feitos a partir de carnes de fornecedores locais ou de carnes provenientes de raças de herança genética de suínos e bovinos, conferindo à linguiça uma reputação nostálgica.
Pode-se criar um debate sobre a falta de supervisão regulatória, mas esses tipos de linguiça têm se tornado cada vez mais populares.
Charcutaria e outros itens alimentícios curados a seco, como presuntos campestres, são um retorno à maneira como os alimentos eram conservados antes do advento da refrigeração mecânica, o que os torna convidativos às pessoas da geração Y, aos apreciadores de iguarias e aos amantes de alimentos produzidos regionalmente. Alguns processadores de carne têm sido procurados para coembalar itens de charcutaria, tendo percebido que esses tipos de alimentos não são tão fáceis de se fabricar meramente pela adição de mais sal ou por fermentação.
Tecnologia de Obstáculos
Charcutaria e linguiças curadas a seco, como o chouriço espanhol (chorizo), landjäeger(linguiça semicurada tradicionalmente fabricada na região sul da Alemanha, Áustria, Suíça e Alsácia) ou salame genovês são linguiças fermentadas que entram em uma destas duas categorias: curadas ou semicuradas. Linguiças semicuradas normalmente são totalmente cozidas, levemente curadas e têm uma textura mais macia se comparadas às linguiças curadas. Linguiça de verão, linguiça libanesa e turíngia são exemplos de linguiças semicuradas. Linguiças semicuradas de charcutaria perderão de 60% a 80% de seu peso original, têm uma textura mais consistente e demoram mais para serem fabricadas devido ao processo de secagem.
Essas linguiças artesanais parecem fáceis de fazer, mas, se produzidas sob condições inadequadas, podem se tornar uma ameaça em termos de segurança alimentar; portanto, é importante compreender a fundo a ciência por trás da sobrevivência bacteriana para fabricar um produto seguro.
As bactérias podem crescer e sobreviver em uma enorme variedade de alimentos e ambientes; dessa forma, a capacidade de controlar seu crescimento é o princípio-chave para se obter um alimento seguro. A Tecnologia de Obstáculos é uma técnica pela qual fatores de conservação, chamados de obstáculos, são aplicados no alimento para potencializar sua segurança. O objetivo dessa tecnologia é o de inserir bactérias em um ambiente que diminuirá ou inibirá seu crescimento sem comprometer a integridade do produto alimentício (por exemplo, coloração, sabor e textura).
Existem mais de 60 tipos diferentes de obstáculos que podem ser adicionados ao alimento; entretanto, diminuir o pH e decrescer a atividade aquosa são os principais caminhos para conservar linguiças de charcutaria semicuradas. É fundamental entender como o pH e a atividade aquosa afetam patógenos na fabricação dessas linguiças.
O crescimento bacteriano acontece em quatro etapas distintas, ou fases: fase lag; fase log (ou exponencial); fase estacionária e fase de declínio.
• a fase lag é o período de tempo no qual as bactérias estão se ajustando a seu ambiente e a célula está se desenvolvendo, mas esta ainda não é capaz de se dividir e aumentar em termos de quantidade;
• a fase log, às vezes denominada logarítmica ou exponencial, é a mais temida pelos processadores de carne ao longo da curva de crescimento bacteriano. Sob condições adequadas, as bactérias têm sua população dobrada em uma taxa consistente. Às vezes, num período de tempo tão rápido quanto o de 20 minutos;
• finalmente, as bactérias vão esgotar os nutrientes disponíveis e outros fatores inibidores acumulados e a taxa de crescimento e de declínio serão iguais. Isso é conhecido como fase estacionária, na qual a população permanece estável;
• a fase de declínio é autoexplanatória; as células morrem devido à completa exaustão de nutrientes ou outros fatores inibidores, já que a temperatura aumenta ou diminui fora do intervalo de tolerância das células.
Princípios básicos da fermentação
A fermentação é uma das técnicas de conservação mais antigas e é um dos obstáculos mais utilizados na fabricação de linguiças semicuradas. A fermentação de carnes é obtida pela adição de bactérias boas e seguras, mais conhecidas como culturas iniciais, que causam uma redução no pH (mais ácido). Essa redução no pH é importante, já que a maioria das bactérias, incluindo as patogênicas, não conseguem sobreviver em um ambiente ácido. Além disso, uma queda brusca de pH é necessária durante a fermentação, já que algumas bactérias, como a Salmonella, podem se tornar tolerantes à acidez durante uma queda vagarosa de pH. Podem ocorrer problemas em produtos cárneos fermentados em virtude de a Salmonella conseguir sobreviver sob níveis de pH tão baixos quanto 3,8 e níveis mínimos de atividade aquosa de 0,94.
A Salmonella, e muitos outros tipos de bactéria, conseguem sobreviver em condições ácidas em carnes fermentadas devido a sua resposta à tolerância à acidez, que faz com que as bactérias se adaptem ao pH mais baixo. Para complicar ainda mais as coisas, quando ingerida, a Salmonella tolerante à acidez é capaz de sobreviver no ambiente ácido de nossos estômagos e se procriar no trato gastrointestinal inferior, causando uma doença mais grave. Assim, uma queda brusca no pH, para 4,6, é ideal para evitar que aSalmonella, bem como outros patógenos e bactérias deteriorantes, tornem-se tolerantes à acidez. Os processadores de carne precisam utilizar a cultura bacteriana correta, dado que algumas demoram para fermentar, e, consequentemente, podem originar uma ameaça em termos de segurança alimentar na fabricação de charcutaria. Entre em contato com seu fornecedor para ter certeza de que a cultura bacteriana inicial adequada está sendo utilizada.
A função das enzimas e o transporte de nutrientes dentro das células bacterianas são inibidos sob pH baixo. Quando se inserem micro-organismos em um ambiente desfavorável, sua capacidade de proliferar depende de sua aptidão de reverter o pH a um nível mais neutro. Quando as células bacterianas estão em um ambiente ácido, o balanceamento de íons de hidrogênio se torna extremamente importante para que componentes celulares primordiais, tais como o ATP e o DNA, funcionem. A descarboxilase de aminoácidos age melhor com pH 4,0 e perde funcionalidade com pH a 5,5, o que causa um ajuste espontâneo do pH para que fique neutro. Para manter um pH neutro, são necessárias reações anti-Porter de descarboxilação dos aminoácidos, exigindo a presença de muitas descarboxilases.
Atividade aquosa
Outro obstáculo importante que pode ser utilizado na fabricação de linguiça semicurada é a diminuição da atividade aquosa durante a fase de declínio da produção. Atividade aquosa pode ser definida como a quantidade de água livre disponível para o crescimento bacteriano. Carne fresca possui uma atividade aquosa relativamente alta, de 0,99, fornecendo água livre suficiente para que as bactérias se desenvolvam. O Departamento de Agricultura dos EUA considera qualquer alimento com atividade aquosa acima de 0,86 um produto potencialmente perigoso.
A atividade aquosa é um dos principais caminhos para o crescimento microbiano e sobrevivência em produtos cárneos fermentados. Produtos fermentados curados e semicurados são considerados como prontos para consumo; então, não precisam de um tratamento térmico antes de serem consumidos; consequentemente, os processadores de carne devem se certificar que o processo produtivo faça uso de ingredientes que não contenham patógenos. Apenas algumas células da Salmonella, ou shiga toxina produtora de E. coli (STEC, na sigla em inglês) são suficientes para causar doenças. Esses patógenos conseguem sobreviver e se reproduzir sob atividade aquosa baixa, baixo pH e ambientes com alto teor de sal.
O valor mínimo de atividade aquosa para que a maioria das bactérias patogênicas cresça é de 0,87. Níveis mais baixos de atividade aquosa interferem nas atividades fisiológicas necessárias para a divisão celular, afetando, assim, a fase log de crescimento. A Comissão Internacional de Especificações Microbiológicas para Alimentos relatou que a bactéria Staphylococcus aureus consegue sobreviver sob uma atividade aquosa tão baixa quanto 0,83. Felizmente, sob esses níveis reduzidos de atividade aquosa, essa bactéria não consegue produzir toxinas.
Durante a produção de linguiças fermentadas, realizar o controle da umidade é a forma mais essencial de se evitar crescimento microbiano. Se produtos com baixa atividade aquosa são capazes de se reidratar antes do consumo, é possível que patógenos proliferem se o produto não for armazenado adequadamente. Quando a atividade aquosa do meio externo (quer dizer, o alimento) é diminuída tanto pela remoção de água quanto pela adição de solutos, qualquer micro-organismo presente deve se adaptar às novas condições para se proliferar, causando, assim, deterioração ou produção de toxinas. Uma vez que os micro-organismos são pequenos, não contêm barreiras impermeáveis à água. Além disso, estão sempre em contato próximo com o ambiente e tendem a entrar rapidamente em equilíbrio osmótico com seu entorno.
Se, em um dado alimento, a atividade aquosa for baixa (ou a osmolalidade for alta), e a maioria dos solutos que estiverem presentes não conseguirem penetrar na membrana celular, então os micro-organismos perdem água por osmose até o equilíbrio ser restabelecido. Os solutos alimentares mais comuns, tais como o cloreto de sódio e sacarose, glicose, não penetram imediatamente na membrana celular; então, a perda de água das células é o resultado comum da conservação de alimentos, diminuindo-se a atividade aquosa. À medida que há perda de água, dependendo de seu grau, o metabolismo é diminuído, ou evitado, e o crescimento cessa; dessa forma, temos uma conservação bem-sucedida.
Conclusão
A Tecnologia de Obstáculos vem sendo usada há décadas para fabricar um produto alimentício seguro. Diminuir o pH e a atividade aquosa de linguiças de charcutaria semicuradas são os dois principais obstáculos utilizados no processamento desses produtos.
Os processadores de carne e chefs que fabricam esses produtos precisam se certificar de que estão utilizando a cultura bacteriana inicial correta e secar a linguiça adequadamente para garantir a segurança alimentar desses produtos. E, acima de tudo, todas as etapas precisam ser realizadas em um ambiente limpo e higiênico.
Escrito por: Dr. Gregg Rentfrow, Ph.D.; Dr. Melissa Newman, Ph.D.; Jennifer McNeil, Bacharel em Ciências; Universidade do Kentucky (EUA) Departamento de Ciência Animal e de Alimentos