Com o simpático apelido de “Room for the River”, que pode ser traduzido como “Espaço para o Rio” , já está em fase de finalização o projeto que o governo holandês criou para evitar que o rio Ijssel inunde a pequena cidade de Deventer durante as chuvas que têm castigado a região cada vez mais, por conta das mudanças climáticas. A boa notícia me chegou pela revista “Resurgence & Ecologist”, publicação britânica bimensal que acabo de receber (aqui a versão online). E me fez lembrar a viagem que fiz à Holanda em 2011, a convite dos patrocinadores desse mesmo projeto, um dos cinco ou seis que estão sendo postos em prática para que aquele país se adapte aos eventos extremos cada vez mais frequentes.
Holanda está entre os países mais densamente povoados do mundo e tem grandes áreas abaixo do nível do mar. Não é difícil imaginar que a região sofre com inundações há muito tempo, mesmo antes de o clima começar a mostrar sinais de mudanças por causa do acúmulo dos gases de efeito estufa. Em 1993 e 1995 foi pior: enchentes fizeram subir um dos principais rios do Delta, o Waal, e 250 mil pessoas tiveram que ser retiradas de suas casas, alagando ainda Nijmegen, uma cidade que tem mais de dois mil anos de idade. Começou aí uma forte ação que uniu todos os órgãos de todas as instâncias de governo para salvar o país de uma catástrofe maior. A sociedade civil também foi convocada, mandou ideias, sugestões.
Quando estive lá, a expectativa era de que o Parlamento aprovasse uma lei para criar o Fundo Delta, que a partir de 2020 poderá ter 1 bilhão de euros em seus cofres anualmente para o país lidar com o problema das enchentes.
Um dos pesquisadores que trabalham para o projeto “Room for the River” levou-nos – a mim e a alguns colegas jornalistas de outros países que também foram convidados – a um ponto do rio Ijssel que nos permitia ver algumas das casas que seriam removidas para que as obras de ampliação do leito começassem (veja aqui, em inglês, o site do projeto) . Eram lindas, o cenário era de cartão postal. Os proprietários já estavam avisados e teriam tempo suficiente para rearrumar suas vidas. Todos estavam de acordo porque, de uma forma ou de outra, sabiam que se ficassem ali, correriam perigo de vida.
O rio teve seu leito alargado numa parte, em outra fizeram uma espécie de concha na parte interna para que a água possa escoar. Construíram ainda pequenas retenções noutro lugar. O custo da obra foi de 350 milhões de euros e cerca de 4 milhões de pessoas serão beneficiadas.
Se você, leitor, legitimamente está tentando fazer alguma ligação entre essa iniciativa e a nossa história recorrente de tempestades e desabrigados, vou ser sincera: não há. Mas não é absurdo dizer que poderíamos copiar o projeto para reproduzi-lo aqui, mesmo com realidades geográficas totalmente diferentes. É uma tecnologia que está disponível. Um dos profissionais que trabalha no “Room for the River” esteve no Brasil, fez algumas palestras e mostrou que a técnica usada para salvar o Delta holandês pode, sim, ser adaptada para outras terras. Ficou nisso.
Holanda é um dos países que está no topo do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que anualmente é lançado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Tem uma dependência forte em usinas termelétricas para conseguir energia, embora haja um investimento severo em eólicas. Não tem hidrelétricas, é claro.
Mas, para além do fato de ser um país bem mais rico do que o nosso, e das diferenças de relevo, o que a Holanda está mostrando, com tanto investimento em obras que vão torná-la menos vulnerável às enchentes, é cuidado. E essa lição de casa pode ser apreendida. Porque não se trata apenas de salvar o meio ambiente, mas de não expor pessoas, bichos e agricultura às intempéries. Uma visão que já deveria fazer parte do bê-a-bá de qualquer autoridade, seja regente, presidente ou ministro, de qualquer nação, seja pobre ou rica.
Não se trata mais de acreditar ou não no fato de que os gases de efeito estufa estão a mudar o clima e de que o fenômeno é de responsabilidade dos homens. Podemos até postergar a discussão porque, na prática, as tempestades, secas e furacões estão botando na ordem do dia a necessidade de tomar medidas de adaptação.
Em vez disso, aqui no Brasil o ano de 2015 não foi dos mais prósperos para o meio ambiente e as pessoas. Houve aumento do índice de queimadas e incêndios (leia aqui) na Amazônia para dar mais espaço para a pecuária. Em Minas Gerais, um erro absurdo, incompatível com os debates mundiais sobre processos industriais mais conscientes e responsáveis, deixou uma barragem inteira de lama se espalhar por rios e mares, afetando pessoas, bichos e terras. Enquanto isso, uma crise política se arrasta, tornando pouco possível que se ponha na agenda “outros assuntos”.
Mas a “Resurgence & Ecologist” traz ainda boa notícia para quem se preocupa com o que come. Com o patrocínio do The College of Real Farming and Food Culture (CRFFC), foi dado o primeiro pontapé para uma campanha que pretende repensar e reformular a agricultura, com bases bem diferentes daquelas que vemos hoje. Chama-se “Enlightened Agriculture”, que pode ser traduzido por “Agricultura esclarecida” e, por enquanto, está aberta a sugestões e ideias somente através de um espaço criado na internet (veja aqui) . Pretende ser, segundo Colin Tudge, biólogo, escritor e idealizador da campanha, um “exercício gigante de democracia”.
“Milhões de pessoas estão tentando cultivar a terra de acordo com os princípios que eu chamo de agricultura esclarecida, baseados em métodos de agroecologia e criados expressamente para prover boa comida a todos sem, para isso, ter que demolir o entorno. Há pessoas que ainda estão tentando, e há centenas de organizações não-governamentais, associações e instituições fazendo algo para ajudá-las nesse caminho. Do movimento “Slow Food” que começou na Itália em 1986, ao movimento global de camponeses chamadoVia Campesina que começou em 1990, passando pelos consórcios que procuram terra para cultivar de maneira consciente. Tudo isso é capaz de transformar uma frustração global em massa crítica. E a campanha vai ajudar”, diz o artigo escrito por Colin Tudge para “Resurgence”.
Aqui no Brasil temos alguns movimentos que podem auxiliar a compor essa espécie de “mosaico da boa agricultura”, como o Banco de Sementes da Aldeia Velha, além de um órgão – o Consea – especificamente voltado a essa tarefa. Talvez essas linhas possam se encontrar algum dia.
O que se precisa é dialogar mais, ampliar a possibilidade de conhecer experiências, trocar informações. Quer seja para descobrir novas tecnologias que possam reduzir problemas, quer seja para formas diferentes de plantar e colher sem precisar, para isso, ficarmos reféns apenas do comércio mundial de alimentos. Colin Tudge ajuda a refletir sobre o que anda travando o processo de trocas, e me permito terminar esse texto com palavras dele:
“O mundo derivou tanto para a direita que aqueles que sugerem que é possível cooperar, em conjunto, por um mundo melhor, são vistos como perigosos subversivos. As regras do neoliberalismo – baseadas na crença de que o mundo será melhor se focarmos na competição impiedosa – e os mais poderosos ainda acreditam no discurso de Margareth Thatcher, que disse: ‘Não há alternativas’… O que precisamos é de sistemas políticos que sejam democracias verdadeiras; um sistema econômico que seja democrático e leis que sejam realmente justas para todos.”
Amelia Gonzalez, g1