Lá de longe veio gritando: Aqui é a puliça, se entregue senão eu te arranco o couro, fí de quenga. Sem pedir licença, meteu o pé na porta fazendo o caco de tábua virar farinha. Assim que adentrou, seus olhos divisaram um jirau onde dormia Zé Preto que levou um catiripapo no pé do ouvido, outro no queixo de baixo pra riba e mais um de riba pra baixo que é prele saber com quantos paus se faz uma canoa. Isso feito, o Zé, meio que forocobó exclamando quê que isso, gente, aihaihai chama a puliça, cadê minha carabina meudivinoispritosanto!
Essa é uma obra de ficção, qualquer semelhança com pessoas, nomes, local ou fatos, terá sido mera coincidência
O policial, todo furibundo, num safanão arrancou o resto de um cobertor sapecanegrim que cobria o Zé e, encarando-o de perto, vociferou, espargindo perdigotos na sua (dele) cara: Uai, cadê a sua valentia excomungado, cadê? Com as muié ocê é uma onça, com os home vira florzinha, né? — E deu um soco na cara do Zé que, se não tivesse negaciado, tinha virado munha tamanha a força que ele pusera no soco fazendo a mulher que o denunciara dar um grito de quem pisou na brasa, implorando que não batesse mais não, que ela perdoava o coitadim, quê que isso gente, tenha dó, ora! O policial coçou a cabeça pensando em dar umas curriadas na cacunda daquela masoquista duma figa. Nisso, largou o Zé prá lá e foi percorrendo o bangalô de um cômodo só à cata dalgum petisco que amainasse o seu voraz apetite. Fosse onde fosse ele tinha que degustar fosse o que fosse. Sacode uma lata, destampa uma panela suja e nada, tudo vazio. Um chiado de quem está chupando ar pros cacos de dente irrita-o vendo o Zé na maior insolência se preparando pra repetir a dose. Não teve apelo, deu-lhe um chute na bunda que lhe estourou um furúnculo esparramando carnegão pela roupa suja. Meio que mancando e soltando imprecações sobre a catervagem que assola o Brasil, volta à procura de comida. Ô povinho desgraçado que não tem nada pra comer dentro de casa, gente, que porqueira de pobreza, meu Deus! Quando está ajeitando as calças sobre o barrigão, olha o que tem debaixo do catre? Uma lata de doce de leite! Ele cata-a e, como já estava aberta, absorve o aroma do doce com tal frenesi que o Zé pensou que ele tava tendo um troço. Aí o carrasco, todo bonzinho, enfiou o fura bolo dentro da lata e gungunava uns gemidos lascivos ao lamber o dedo perguntando para a vítima por que foi que o Zé te deu uma tunda, vamos, desembucha. A mulher toda dodói e desgandaiada dentro duns trapos e num misto de ira e de inocência, sentou-se numa coivara que servia de lenha e começou a relatar, com-pas-sa-da-men-te:
– Bão! – Começou ela – Ontem, chegando do serviço, ele falou que ia pescar com uns amigos, mais eu sei que é cascata, é tudo cachaça. Eu estrilei, bati o pé dizendo não, que tinha que comprar as coisas aqui pra casa e ele nem tchum, rueu um osso de costela com mandioca e saiu onte só chegando hoje, bêbado que nem uma égua. Num trouxe nem peixe, nem carne, nem nada de nada, só essa lata de doce que o sinhô táquela na mão. Intonce! – Continuou ela desacorçoada e o policial ouvindo e sorvendo e a cada gole sorvido volvia os olhos aos céus num supremo agradecimento por saborear aquele manjar dos deuses – O disgramento do Zé mija nas carça e puxa a peixeira e eu gritei: Valei-me minha santinha e o Zé disse: Deixa de sê besta muié e rancou a tampa na faca e puxou a estrovenga pra fora, enfiano na lata que o sinhô ta segurano e falou pra assim mim: Lambe aqui!…
– Quase Gumitano eu gritei – Tu ta doido? Chama tua mãe pra lamber! O resto o sinhô já sabe! – Finalizou ela coçando um resto de sobrancelha.
Quase não se ouviu a estridente buzinada dum caminhão, mas deu pra ver um leve tremor, como quando se vai chorar, agitando os lábios do verdugo enquanto Zé Preto, indiferente, tragava ar pros cacos de dentes.
(Alcivando Lima, escritor – alcivandolima@gmail.com)