O território brasileiro é muito vasto e, por causa disto, várias regras e legislações relativas às propriedades no campo, que fazem divisa com outros países, são desconhecidas e complexas. Para dar um passo conclusivo sobre alguns aspectos nesta área, foi publicada em 23 de outubro passado uma lei que visa pôr fim a uma das mais controversas questões: o domínio particular em áreas rurais contidas na faixa de fronteira do Brasil. A nova lei entra em vigor no próximo dia 7 de dezembro.
“A faixa de fronteira seca corresponde à fronteira do Brasil com outros dez países, abrangendo 11 Estados da Federação, mais de 500 municípios e mais de 30 cidades gêmeas, considerada área de segurança nacional. Tal faixa não é homogênea, por diversos fatores geográficos, sociais e econômicos”, avalia a diretora técnica da Sociedade Nacional de Agricultura, a advogada Maria Cecília Ladeira de Almeida. Ela também é professora de Direito Civil, Agrário e Ambiental da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Maria Cecília informa que, por causa destas características, é possível dividir a fronteira nacional em três grandes regiões: Arco Norte, Arco Central (RO, MT e MS) e Arco Sul (PR, SC e RS). Nestes arcos encontram-se populações indígenas, com ou sem contato, descendentes de imigrantes europeus, atividades extrativas, agrícolas familiares e agronegócios, exploração madeireira mineral, exploração escrava, além de contrabando de toda ordem.
“Neste universo estão aqueles que exercem a atividade agrária, nos seus mais diversos perfis, quer como proprietário familiar, arrendatários, parceiros, assentados, detentores de agronegócio, etc.”, esclarece.
SEGREGAÇÃO
De acordo com a diretora da SNA, a distância das faixas de fronteiras dos grandes centros, muitas vezes da capital do Estado federado onde estão localizadas, torna estes lugares segregados com populações, muitas vezes, esquecidas das políticas públicas, sociais e econômicas eficazes para o desenvolvimento.
“A própria incerteza dos eventuais proprietários, relativa aos títulos sobre a terra que possuem, no sentido mais amplo da palavra, gera a enorme insegurança para a definição de políticas públicas, para s aplicação de investimentos, para o empreendedorismo, fatores que impulsionam o desenvolvimento e que se encontram em outras regiões”, analisa.
Ainda segundo ela, não é difícil encontrar títulos emitidos pelos Estados federados em área da União, ou sem, que tenham sido emitidos sem o procedimento correto exigido na época de sua concessão ou alienação.
De acordo com Maria Cecília, “a necessária regularização fundiária do País passa pela faixa de fronteira que merece um tratamento jurídico que dê certeza ao seu ocupante do que possui e do quanto pode transformar seu imóvel num bem de capital”.
Ela também ressalta que, quando se fala em cooperação e interdependência internacional, globalização, entre outros, por via terrestre, a faixa de fronteira é a primeira área de atuação.
CONCEITO DE FAIXAS
De acordo com dados históricos, foi no Brasil do século 19que surgiu o conceito de faixa de fronteira vinculado à ideia de segurança nacional, em face das diversas guerras que se alastraram na América do Sul, como a Guerra da Cisplatina, do Prata, do Paraguai, entre outros conflitos. Era preciso firmar a soberania, legitimando a propriedade do País sobre seus limites geográficos, enfim, sobre a faixa de fronteira.
A Constituição de 1891 (a primeira da República) inaugurou a questão, determinando que o Congresso Nacional adotasse regime conveniente à segurança das fronteiras. Daí para frente, as Constituições e legislações infraconstitucionais disciplinaram a matéria, fixando, inclusive, limites para a faixa de fronteira: 66 quilômetros (correspondentes a 10 léguas); 100 quilômetros e, finalmente 150 quilômetros de um ponto seco na fronteira para o interior do Brasil.
“Hoje, por todos os fatores de segurança e desenvolvimento, é uma exigência a certeza jurídica dos títulos dos que habitam tais regiões. Não é possível continuar olhando para a enorme faixa de fronteira do Brasil e considerá-la terra de ninguém”, argumenta.
Conforme explica, esse caos das situações de fato, aliados ao caos legislativo que se construiu, ainda que com a melhor das intenções, faz com que o legislador novamente venha apresentar nova legislação para corrigir os equívocos passados, visando preservar os direitos adquiridos e ratificando os títulos concedidos. “Essa medida é necessária para pôr um fim a esse emaranhado legal e permitir que, com a segurança fundiária, possa haver o tão almejado desenvolvimento, com as ocupações regularizadas, com o incremento da produção agrícola, inclusive extrativista, e com a redução da clandestinidade a que está submetida a região”, evidencia a diretora da SNA.
Maria Cecília afirma que, da primeira impressão sobre a lei em questão, verifica-se que o legislador considerou o trabalho de ratificação hercúleo, de tal sorte que deu um prazo de quatro anos para que o particular promova a sua ratificação perante o órgão competente, a partir da data da publicação da lei, isto é, do dia 23 de outubro de 2015. Portanto, a data fatal para a ratificação será dia 23 de outubro de 2019.
“Impossível dizer se é o bastante, a começar pelo despreparo aliado ao desmanche das autarquias que devem atuar como entidades que atuarão na ratificação”, observa a diretora da SNA.
RATIFICAÇÃO
As áreas passíveis de ratificação são todas aquelas que tenham registro no competente cartório de registro de imóveis da circunscrição do imóvel em questão, até a data da publicação da lei. Incluem-se os imóveis obtidos por concessão de terras devolutas e alienação por títulos expedidos pelos estados federados. Também estão incluídos no processo de ratificação os desmembramentos e remembramentos de referidas áreas.
“A partir daí, o legislador separa os procedimentos para a ratificação de imóveis de até 15 módulos fiscais e para áreas acima de 15 módulos fiscais. Finalmente, para os imóveis com mais de 2.500 hectares, há outras exigências em consonância com a Constituição de 88.”
Os imóveis com área de até 15 módulos fiscais terão seus registros ratificados, desde que não tenham o domínio questionado ou reivindicado na esfera administrativa ou judicial pela Administração Pública ou ação de desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária até a data da publicação da lei, isto é, 23 de outubro de 2015. “Naturalmente se houver sobreposição da área a ser ratificada com outra área particular, a ratificação só acontecerá quando for resolvida a questão entre particulares”, comenta.
De acordo com a advogada, para as áreas de mais de 15 módulos fiscais, a obrigatoriedade da certificação do georreferenciamento, para iniciar o processo de ratificação por si, já diz tudo, em termos de entrave.
“O georreferenciamento, previsto na Lei n.º 10.267/01, tem sofrido diversas prorrogações quanto ao prazo fatal para o georreferenciamento e certificação. Se por um lado, os interessados deixam para a última hora, aguardando uma nova prorrogação, o que aconteceu sistematicamente, por outro, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) não foi aparelhado suficientemente com pessoal necessário para atender a demanda criada, mesmo por que as pequenas propriedades rurais deveriam ter seu georreferenciamento feito pelo próprio Incra”, ressalta.
Nestes casos, ela explica que se o interessado não promover a ratificação ou ela for impossível, no prazo de 4 anos, permitirá a União que requeira o registro do imóvel em nome da União. Mas se não houver solução para a ratificação requerida no prazo de 2 anos, isto não implicará em ratificação compulsória.
“Em que pese o interesse público do tratamento diferenciado, não se podendo ver tal diversidade como privilégio, mas como precaução com o patrimônio público, não se pode deixar de pensar que, com isso, o Poder Público pode se deixar levar por seu insistente descaso com a regularização fundiária do País, iniciado com a legislação do Brasil colônia e que, até hoje não, conseguiu eficazmente arrecadar o patrimônio de terras devolutas, não conseguiu ter o mosaico das propriedades rurais em todo Brasil. A segurança da regularização fundiária é fundamental para o desenvolvimento do País”, enfatiza a diretora da SNA
Ela salienta que, a partir daí, a legislação discrimina o seu alcance em razão das diversas mudanças da largura da faixa de fronteira, em relação ao tempo. Por exemplo: 66 quilômetros obtidos entre a entrada em vigor da Constituição de 1891 até a entrada em vigor da Lei 4947/66, e assim por diante.
Todavia, cria aqui um problema, pois entre os limites e restrições da época. A obrigatoriedade da previa aprovação do Congresso Nacional para áreas acima de 2.500 hectares surge em 1988, com a promulgação da Constituição de então. Mas, como exigir tal aprovação em aquisições anteriores? Para a dra. Maria Cecília, o governo precisa se mostrar presente neste sentido. “O Congresso não se manifestava em épocas passadas e não deve se manifestar agora, nas referidas ratificações. Somente nas aquisições posteriores a 5 de outubro de 1988. Está se ferindo o ato jurídico perfeito e o direito adquirido”, comenta.
A lei excepciona alguns procedimentos de ratificação, como os casos de imóveis que já estejam envolvidos em processo judicial de desapropriação, por interesse social para fins de reforma agrária, e que não comprovem a legitimidade de seu destaque do patrimônio público, embora tenham registro imobiliário. Nestes casos, ela afirma que deverá haver a citação do estado membro da federação, para participar do processo. O valor da indenização permanecerá depositado até que resolvida a questão do destaque, cujo vencedor suportará então a desapropriação, nos termos da Lei 8.629/93.
Existe, porém, uma controvérsia relativa as áreas que não forem ratificadas, pois elas registradas em nome da União. E o que fazer com as benfeitorias e acessões realizadas pelos particulares nas respectivas áreas, enquanto ocuparam o imóvel? Para a dra. Maria Cecília, só existe uma maneira de resolver esse impasse. “Reza a doutrina e a legislação que toda e qualquer benfeitoria em imóvel público é de má-fé e, como tal, não pode ser indenizada, com exceção das necessárias. Por outro lado, também reza a legislação agrária que o poder público não pode deter para si imóvel rural, devendo transferir para processos de regularização fundiária. Dessa forma, as áreas arrecadadas e registradas em nome da União serão destinadas a programas de regularização fundiária. Neste caso, os ocupantes anteriores têm preferência na aquisição de tais parcelas, como posseiros que agora serão considerados, nos termos das demais legislações agrárias em vigor”, detalha.
Por fim, dra. Maria Cecília afirma que, para se obter êxito nessa questão, “é preciso que todos os envolvidos atuem com bom senso, pois a segurança da dominialidade permitirá o empreendedorismo, o incremento do setor agrícola, a mitigação da clandestinidade, enfim, o desenvolvimento nacional”.
SNA