Não satisfeitos com o mercado de nicho, estamos trabalhando na perspectiva de reverter o modelo dominante de desenvolvimento.
A visão acadêmica, muitas vezes, se baseia na ideia de que a agricultura orgânica nasceu em 1940 com a publicação do livro “Um testamento agrícola”, do britânico Albert Howard. Ele dizia que a fertilidade do solo e a saúde das plantas e animais dependem da diversificação e rotação de culturas. Também criticava os fertilizantes químicos e, em seu lugar, preconizava o uso do composto orgânico que chamou de compostagem Indore, método sistematizado por ele a partir do que conseguiu aprender com os agricultores da Índia, praticantes de uma agricultura milenar e sustentável sintonizada com o ecossistema local.
As ideias de Howard se opunham à teoria do químico alemão Justus von Liebig, que em 1840 difundiu os fertilizantes químicos na agricultura. Posteriormente, estes fertilizantes vieram a integrar os pacotes tecnológicos usados no programa mundial de modernização agrícola, difundido pelo grupo Rockefeller, conhecido como “Revolução Verde”.
A contraposição à agroquímica e o composto Indore, apesar de rejeitados na época, causaram impacto e ficaram conhecidos como se fosse uma “receita de bolo”, possivelmente daí surgiu a ideia simplista de que a agricultura orgânica se resume à aplicação duma receita.
O termo “orgânico” aparece quando Jerome Irving Rondale, baseado nas ideias de Howard, publica em 1948 o livro “The Organic Front” (A Frente Orgânica). Ele lançou também a revista “Organic Gardening and Farm” (Jardinagem e Fazendas Orgânicas), que se tornou a partir dos anos 1970 um baluarte do movimento de agricultura alternativa norte americana. Nesta mesma época, surgem no mercado europeu os primeiros produtos com a denominação de orgânicos e em 1972 nasce a International Federation of Organic Agriculture Movements IFOAM (Federação Internacional do Movimentos de Agricultura Orgânica), consolidando a denominação “orgânicos” para produtos alternativos à agricultura química, embora as denominações natural, biológica, ecológica, sustentável, entre outras, permaneçam em uso, independente de regulamentações públicas.
Por sua vez, os consumidores, confusos em meio a tantas denominações, seguem procurando garantias de produtos saudáveis, ecológicos, economicamente viáveis e socialmente justos.
É bastante comum entre os teóricos a confusão entre agricultura orgânica e produto orgânico certificado.
Vale lembrar que já se praticava agricultura bem antes da descoberta dos produtos sintéticos, ou seja, a história dos agroquímicos e transgênicos é extremamente recente e curta se comparada com a história da agricultura. Da mesma maneira, as agriculturas alternativas já existiam no Brasil e no mundo, bem antes do regulamento nacional que estabeleceu a nomenclatura orgânica e a certificação em 2003.
Sob esse aspecto, seria justo reivindicar que o termo “agricultura” permanecesse com os que continuam a plantar como era antes da introdução dos insumos sintéticos. E o que veio depois, deveria ser chamado de: agroquímica, produção agrotóxica, transgênica ou outra denominação qualquer que represente os sistemas produtivos com insumos artificiais que dominaram a maior parte dos espaços originalmente ocupados pela agricultura primordial.
É pertinente também reivindicar que nos rótulos dos produtos oriundos da agroquímica devam constar todos os ingredientes artificiais adicionados em seu processo produtivo, além dos avisos sobre ingredientes cancerígenos, a exemplo das embalagens de cigarro.
Nós, agricultores que viemos construindo caminhos alternativos ao modelo dominante do agronegócio , temos resistido a pressão dos agrotóxicos que nos rodeiam, desde muito antes de existir a regulamentação que estabeleceu a nomenclatura de orgânicos para os alimentos que já vínhamos produzindo há décadas com ou sem denominações específicas. Persistimos mesmo quando o mercado era inexpressivo e éramos ridicularizados pelos “papas” da agronomia que, com o apoio do estado, enfiam “goela abaixo” os pacotes tecnológicos envenenados da chamada Revolução Verde.
Por ocasião da construção do marco legal da agricultura orgânica, fomos chamados a contribuir no processo. Consideramos adequada a nomenclatura “sistemas orgânicos de produção” no sentido de que ela traz uma visão sistêmica de organismo, uma visão orgânica em que todos somos parte de um único organismo planetário e procuramos praticar uma agricultura em sintonia com a cosmovisão, na qual o objetivo não é necessariamente a certificação e a venda para um nicho de mercado de alta renda, mas buscamos sobretudo a harmonia com a natureza.
Colocar venenos no solo, nas plantas e nos animais não prejudica somente o outro, prejudica todo o organismo do qual fazemos parte inseparável. Enfim, prejudica a nós mesmos e a nossos descendentes, assim como o desmatamento, a erosão genética da biodiversidade, a concentração da posse das terras e bens materiais, o desrespeito as tradições e culturas, geram pobreza, fome, sofrimento e é incompatível com a visão orgânica que procuramos pôr em prática.
Com o avanço da consciência ecológica, seja ela rasa ou profunda, nasceu o mercado de alimentos orgânicos, que por modismo ou por consciência planetária, vem crescendo a níveis que causam inveja a outros segmentos.
Assim como na roça surgem organismos oportunistas, também em nosso meio brotam empreendedores oportunistas de olho no lucro do mercado orgânico.
O desejo pelo lucro deste mercado alternativo é natural, o problema acontece quando a ganância sobrepõe a ética, são praticados crimes contra os consumidores, denegrindo a imagem dos agricultores que dedicam a vida a pesquisar os princípios da natureza e a produzir em harmonia com ela, cuidando da saúde da terra e das pessoas.
Aproveitadores e criminosos não são exclusividade do mercado de orgânicos, estão presentes em todos os segmentos e profissões. Fraudadores e corruptos são partes indesejáveis da sociedade, assim como doenças são partes indesejáveis da vida.
Através do conhecimento e da autorreflexão, queremos fortalecer cada vez mais a integridade do sistema orgânico como um todo e criar anticorpos para nos defender dessa doença, mas temos consciência que produtores, comercializadores, consumidores e poder público precisam estar juntos nesta tarefa constante, exercendo o controle social.
Delegar este trabalho somente ao estado é ingenuidade. O alarde midiático sobre as fraudes no mercado dos orgânicos é uma reação esperada daqueles que têm interesse em lucrar com a desmoralização dos orgânicos. Porém, mesmo esse tipo de divulgação é útil, pois colabora para despertar o consumidor, fazendo com que a sociedade fique mais vigilante no processo do controle social.
A certificação compulsória é fiscalizada pelo estado e funciona como um tipo de anticorpo contra fraudes no mercado, mas obviamente não dá conta sozinha desta tarefa que deve ser contínua.
No caso do Brasil, a legislação que impôs a certificação e o selo nacional que identifica os produtos certificados foi amplamente debatida com os diversos segmentos do movimento de agricultura alternativa, resultando numa lei com escopo bastante amplo que permite certificar até mesmo alguns sistemas produtivos que não estão necessariamente coerentes com nossa concepção como, por exemplo, monocultivos livres de agrotóxicos. Mesmo assim, a lei estabelece padrões mínimos suficientes para dar aos consumidores credibilidade de não contaminação.
É uma legislação complexa, pois o tema é complexo; carece de aperfeiçoamento, mas traz inovações que expressam algumas ideias baseadas na visão sistêmica que sempre nos norteou. Seu texto contempla, entre outras, a preocupação com o bem-estar animal e aspectos sociais que visam garantir os direitos e a qualidade de vida dos que trabalham no campo. Além disso, possibilita acesso ao mercado de venda direta para agricultores menos capitalizados que não podem pagar uma empresa para certificar seus produtos.
No que tange à garantia aos consumidores da pureza da qualidade dos produtos orgânicos, a legislação brasileira introduz formalmente o conceito de controle social, através dos Sistemas Participativos de Garantia (SPG) e dos Organismos de Controle Social (OCS), nos quais os produtores monitoram e controlam uns aos outros, envolvendo neste processo consumidores, técnicos e outros atores que fazem constantemente verificações no campo. Qualquer pessoa no Brasil pode fazer parte de um sistema participativo de garantia visitando os agricultores, vendo com seus próprios olhos, questionando, aprendendo e ensinando localmente no campo sobre os processos de produção orgânica, basta aderir a um dos mais de 250 SPGs ou OCSs espalhados pelo território nacional.
A certificação não é perfeita, pois foi feita e é operada por seres humanos, mas tem sido eficiente na garantia da conformidade à lei para produtos orgânicos no mercado. Existem graves exceções, mas representam uma minoria se considerarmos que apenas 0,6% dos produtos orgânicos analisados pela CIDASC tinham resíduos de agrotóxicos, ao passo que a ANVISA, analisando anualmente produtos convencionais não orgânicos, detecta mais de 25% com níveis de resíduos de agrotóxicos acima do permitido.
A grande maioria dos que praticam a agricultura orgânica não tem intenção de restringir o mercado apenas para lucro próprio. Não satisfeitos com o mercado de nicho, estamos trabalhando na perspectiva de reverter o modelo dominante de desenvolvimento que, nas últimas décadas, transformou nossa paisagem rural em extensos e monótonos monocultivos latifundiários cheios de veneno. Almejamos um planeta alegre, saudável, colorido, culturalmente diverso e agradável para todos viverem saudáveis de acordo com suas necessidades e características individuais.
Romeu Mattos Leite é produtor orgânico na Vila Yamaguishi (Jaguariúna – SP), membro da Articulação Paulista de Agroecologia – APA, presidente da Câmara Temática de Agricultura Orgânica – CTAO – romeu@yamaguishi.com.br
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